UM GUERREIRO DE ALMA GENEROSA

Ainda não era dez horas da manhã e ele, descalço e maltrapilho como sempre, já estava com sua caixa de engraxate pendurada no ombro e com uma cadeira velha enganchada no braço, pronto para sair.

Se tivesse sorte e não chovesse naquele dia, conseguiria engraxar quatro ou cinco pares de sapato; A quantidade que normalmente alcançava nos dias de domingo.

- Mãe, já estou indo.

- Olhe filho, se conseguir um dinheirinho logo cedo, compre um quilo de feijão e o traga rápido para mim que hoje estamos sem nada para o almoço.

Seguiu em direção à padaria do bairro que ficava a oito quadras de distância.

Ficou satisfeito quando lá chegando, viu que não havia ninguém ocupando o canto formado por uma das paredes externas da padaria e o muro de um terreno ao lado. Sorriu, seu “ponto” ainda estava livre.

Ajeitou a cadeira e a caixa de engraxar e partiu para a luta.

- Vai graxa ai, moço? Perguntava a todos transeuntes, numa concorrência acirrada com outros garotos que também engraxavam naquele lugar.

Estava difícil conseguir os fregueses. Parecia que eles preferiam o serviço dos garotos mais velhos, aqueles que eram mais desenvolvidos fisicamente e que estivessem mais bem trajados.

Depois de várias tentativas, conseguiu enfim o primeiro freguês.

Era um rapaz trajando calça jeans e uma camisa bege com listras marrom e que aparentava ter uns trinta anos de idade, talvez um pouco menos. Tinha um olhar sereno, de alguém tranquilo e seguro de si!

O serviço não ficou lá grande coisa, definitivamente engraxar sapatos não era seu forte.

O freguês pareceu não se importar muito com a qualidade do serviço. Não ficou procurando manchas ou pedaçinhos opacos no couro lustrado, como faziam alguns.

Sem perguntar o preço, tirou uma nota de dez cruzeiros da carteira e entregou-a, esclarecendo:

- Fique com o troco!

O engraxate quase sem acreditar, pegou a nota e saiu em louca disparada rumo a sua residência.

A emoção era tanta que passou direto pelo armazém que ficava no caminho, esquecendo-se de comprar o feijão que a mãe pedira. Pudera, era tanto dinheiro que daria para comprar uns dez quilos...

- Mãe, mãe olha só o que um moço me deu, dez cruzeiros.

- Nossa filho que sorte, justo hoje que eu estava precisando tanto...Acho que foi Deus quem mandou...

Anos depois, aconteceu o golpe militar de 1964. Na esteira do golpe, dentre vários movimentos de apoio à ditadura, surgiu uma entidade muito aguerrida e barulhenta, denominada: Tradição-Família-Propriedade, a TFP.

A maioria de seus militantes eram jovens com o cabelo cortado ao estilo militar e que trajando terno e gravata saiam pelas ruas da cidade portando gigantescos estandartes vermelhos e gritando palavras de ordem contra comunistas, ateus, vendilhões da pátria, terroristas e outros bichos mais...

Muitos deles paravam as pessoas que passavam por perto e através de discursos inflamados procuravam converte-los para sua ideologia.

Por essa época, o engraxate já beirava os dezessete ou dezoito anos de idade e por um descuido do destino, haveria de se safar da miséria: Tinha conseguido um razoável emprego e trabalhava em um grande banco como contínuo.

No trajeto entre o ponto final do ônibus e o banco, passava por uma praça que tinha sido escolhida por um grupo de militantes da TFP para suas manifestações, quase que diárias.

Certo dia ao passar pela praça, um fato curioso chamou sua atenção: Percebeu que um dos transeuntes, depois de ouvir pacientemente um militante da TFP, passou a gesticular e de dedo em riste parecia que passava um “sabão” no interlocutor.

Semanas depois, coincidentemente a cena se repetiu: O mesmo transeunte depois de ouvir a preleção do militante da TFP, novamente, de dedo em riste, parecia que o repreendia com todo o rigor!

Aproximando-se um pouco mais, teve a impressão que a fisionomia do transeunte não lhe era estranha. Depois de observá-lo atentamente, lembrou-se de que era a pessoa que anos atrás, pelo serviço de engraxate lhe havia dado uma nota de dez cruzeiros.

Muitos anos se passaram, mas a imagem daquele rapaz, sòzinho e de dedo em riste, enfrentando abertamente vários militantes da TFP nunca mais saiu da sua lembrança.

Pererê
Enviado por Pererê em 23/01/2012
Reeditado em 25/01/2012
Código do texto: T3457754