O ESPELHO RETROVISOR
Meu pai sempre diz que na vida a gente aprende as coisas de duas formas; pela observação atenta, numa aprendizagem paulatina, mas vigorosa ou então levando porrada na tentativa incontrolada do erro e acerto. Eu muitas vezes não observei, por ser apressado ou simplesmente por não ter tido oportunidade de me familiarizar com a matéria e por isto acabei levando na cabeça.
Por exemplo, nos idos dos anos 60 eu não sabia que o espelho retrovisor era um acessório obrigatório, segundo a legislação brasileira de trânsito, utilizado nos veículos para dar visibilidade aos motoristas.
Hoje em dia, nos carros modernos o motorista acerta o posicionamento adequado do retrovisor sem muito esforço utilizando apenas botões do painel a sua frente. Nos carros antigos o sistema era bem mais complicado e muitas vezes necessitava de uma terceira pessoa para agilizar esta operação.
Em Taubaté, entrei num ônibus que me levaria a São Paulo. Antes de entrar vi um individuo, no lado de fora do ônibus acertando cuidadosamente o espelho que hoje eu sei que é um retrovisor. Parecia um Michelangelo dando os últimos retoques na sua Pietá. Olhou, admirou, cuspiu na flanela e limpou esmeradamente o vidro. Olhou para o motorista, fez um sinal de positivo e foi embora.
Ao entrar fui sentar no primeiro banco do lado oposto ao do motorista. Teria toda a visão da estrada e me senti tal um co-piloto. Pus-me confortavelmente. Estiquei os braços para o alto num alongamento demorado. Bocejei ruidosamente e olhei para o interior do carro. Já estava lotado aguardando apenas o início da largada.
Olhei para frente e tinha uma ótima visão, mas do meu lado direito alguma coisa estava errada; o espelho não me permitia ver absolutamente nada. Abri o vidro da janela e estendi a mão direita até alcançar o espelho.
Com alguma dificuldade consegui realocá-lo de posição. Coloquei meu esqueleto comodamente na poltrona, mas verifiquei que precisaria de mais alguns retoques o acerto do posicionamento do espelho. Alguns toques daqui, outros toques dali e pronto, o espelho estava proporcionando para mim a maior visão traseira do ônibus. Teria condição nesta viagem de ver o que estava por vir e ao mesmo tempo ver o que já veio e já se foi.
Pensei cá com meus botões:
- Que sorte tive eu em ter chegado mais cedo e conseguido este assento. Sou um privilegiado!
O movimento na rodoviária estava enorme. O ônibus precisaria conseguir uma brecha e sair da sua posição e se locomover rapidamente para não engarrafar o trânsito. Conseguiu a brecha e estava saindo rapidamente quando de chofre o motorista freia o veículo de transporte coletivo.
Quis dar uma bronca, pois quase meti a cabeça no para brisa, mas me contive ao ver o motorista, um cara mal encarado parecendo um quarda-roupa no tamanho e um demônio espumante na atitude.
- Quem foi o imbecil que mexeu no retrovisor? Feito um animal enlouquecido ele questionou isto em altos berros fazendo o ônibus estremecer violentamente.
Fiquei calmamente no meu lugar, pois o assunto não me dizia respeito. Olhei para aquele monstro transfigurado e pensei comigo.
- Este motorista deve ser um insano, ou alguma coisa deve ter prendido os grãos deste vagabundo.
Formou-se uma fila enorme de carros numa buzinação que jamais se ouviu.
A multidão enfurecida lá fora entre muitas coisas colocou a mãe do motorista na zona
Queriam botar fogo no ônibus. Começaram a apedrejar. Fiquei com medo, fiz algumas orações e pensei.
- Que motorista irresponsável! Deveria ser preso imediatamente. Estamos correndo risco de morte.
Quis dar à bronca a fim de colocar um ponto final naquela palhaçada toda, mas me contive, pois o motorista continuava aos berros querendo saber quem mexeu num tal de retrovisor.
- Será que o tal de retrovisor é o apelido dado a bunda deste imbecil? Fiquei matutando calmamente em meu lugar.
O tumulto fora estava perigosamente grande e não sei por que cargas de água, dentro também a situação esquentou.
Como na vida alguém sempre tem que ser o culpado de alguma coisa, -Tem que ser o Cristo ou o Tiradentes - o povo inteiro do ônibus, como se tivesse combinado entre eles, em uníssono gritou apontando para mim.
- Foi ele! Foi este filho de uma puta que mexeu no seu retrovisor.
O motorista recebeu uma multa por estar estacionado em lugar inconveniente, e para se vingar agrediu-me violentamente dando-me uns sopapos, pegando-me pelos colarinhos e me colocando quase a pontapé para fora do ônibus.
Fiquei desolado ao perder a viagem sem entender o que realmente aconteceu.