Réquiem para um passarinho preto
Réquiem para um passarinho preto
Ontem, por volta das 19 h, o amigo Jota chegou com um cigarro nos lábios e disse na lata: companheiro Jesus faleceu. Os outros fumantes que estavam debaixo do toldo nessa São Paulo que finalmente resolveu chover indagaram se era fato e como ele havia tomado conhecimento. Através do companheiro fulano, esclareceu ele. Fulano é praticamente o líder dessa pequenina agremiação de voluntários por uma vida melhor, senão a vida dos outros, a nossa, e a única coisa que descobrimos nesse incrível paradoxo do voluntariado é que quando nos ajudamos, ajudamos os outros também. Simples assim. A vida do Jesus também era simples, podendo ser resumida da seguinte forma: ele não tinha nada - nem pessoas, nem pertences, moradia ou ocupação.
“Tu tens a ti mesmo”, teria dito Krishna para Arjuna.
Falar sobre isso contando lorota é muito fácil. Complicado é chegar na comunicação real, a do âmago, porque afinal quem quer sair para fora é o âmago e não a conversa fiada.
Sob o toldo, nas cercanias da Lins de Vasconcelos, falou-se por monossílabos e sentiu-se, com pouca definição, o impacto da informação trazida pelo amigo Jota.
O passarinho preto, quando abria o bico, emitia um piado confuso, de difícil absorção não só pelo conteúdo como também por um problema fonético. Membros mais antigos da ONG por uma vida melhor dizem que ele “está assim” há 30 anos. Estava. Assim como? Em dias bons, com calça, sapato, cinto e camisa, às vezes boné e quando chovia, guarda chuva. Em dias ruins, desmazelado, cambaleante, choroso, não raro incômodo. Em dias bons, alinhado, o retrato do cidadão brasileiro dos anos 50, das fotografias antigas, dos filmes antigos, o transeunte anônimo subindo no bonde, o mesmo biotipo. Nos dias ruins, personificava o estereótipo do presente, já estamos todos fartos, colado e copiado nas esquinas, becos e portas de botecos inóspitos pelo país inteiro.
Pelo que se sabe, passarinho preto teve uma existência pautada no caminho inverso do mote “eu quero ter milhão de amigos”. Nalgum ponto da trajetória teve uma mãe que trabalhou como empregada doméstica no entorno do Jabaquara e noutro ponto ele mesmo foi carregador de bagagens no aeroporto de Congonhas.
Com que idade ele partiu, eu também lhe pergunto. Quiçá alguns pontos além dos 60. Sob o toldo ficou-se sabendo que ele fraturara o crânio depois de uma queda, próximo ao metrô Ana Rosa.
Pessoas diziam que você, passarinho preto, vivia num mundo imaginário. Bom, até ontem eu perguntaria: quem não vive? A questão é que ontem me deparei com a informação de que toda alma em busca de evolução chegará ao estágio da compreensão maior do famigerado Todos Somos Um através da seguinte fórmula: você poder ser eu em outra dimensão.
Hoje, na banca, (utilizo a banca para adquirir bastões de nicotina), ouvi um cidadão dizendo para outro: o verdadeiro nome da Cracolândia deveria ser Cachaçolândia. E mais: as autoridades erraram, porque agora espalharam aquilo que estava concentrado. Ora, não deixa de ser uma hipótese. Também hoje, estampado na primeira página de um jornal em letras garrafais: “maioria dos habitantes da cidade quer sair”, ou coisa que o valha. Esse chega a ser um apelo quase anímico. Existe um “não agüento mais” impresso como uma marca d’água no semblante da maioria. E não é pra menos. Cada espaço vago, que poderia transformar-se numa praça ou pracinha, num recanto de lazer e cultura, com assentos confortáveis e um pouco de silêncio, dá lugar ao de sempre: concreto para espremer gente. Somos, na verdade, prezado passarinho preto, legiões de espremidos divididos em castas sutis com diferentes graus de apinhamento e suportabilidade com relação a esta congestão barulhenta, ostensiva, sem a menor graça, sem a graça até de uma anedota de salão.
Ao que parece, você conseguiu o tíquete de saída. E agora me lembro do filme “Nosso Lar” e meu mundo imaginário concebe a sua figura recebendo o acalanto dos vossos, que partiram antes, talvez na mesma toada de pouca fortuna e que hoje concluem com sereno regozijo que tudo, afinal, não passou de um teste e que a verdade não está aqui e sim lá. Tal pensamento me conforta.
Nesse instante confesso, e só daria para confessar nesse instante e não noutro, que sua presença às vezes me incomodava, somente pelo fato de que o me incomodava mesmo não era a sua presença e sim a sua solidão. Chega-se num ponto, durante a caminhada, em que uma série de mitos cai por terra e o campo das possibilidades parece tangível como uma árvore frondosa - a partir de então some dos lábios a afirmação: isso nunca vai acontecer comigo. Não senhor. A gente fica em silêncio (silêncio protege, sabia?) e tece a proteção para o perímetro, cientes de que não controlamos absolutamente nada.
Para o leitor, a título de esclarecimento, a ONG não tem estatuto de ONG e tampouco recebe ajuda material de quem quer que seja. Trata-se de uma modesta agremiação de voluntários, existente nalguns logradouros da megalópole, e voltada apenas para o autoconhecimento e alargamento da consciência. Assim, inexiste qualquer controle de seus membros ou registro dos mesmos. Assim, o companheiro Jesus, que ninguém sabe se era nome, sobrenome ou apelido, foi enterrado como indigente.*
Seu xará, o Mestre, andava pelos povoados esclarecendo as almas para o Despertar, e alertava que este só acontecia pelo auto exame.
Leva tempo. Os Lá de Cima sabem. Cá embaixo ficamos conformados, atônitos, passivos, ferrenhos ou brandos, alertas ou vagos, tentando, buscando, espero que este réquiem lhe faça alguma justiça, porque eu, dentre outros, sou testemunha de que você tentou. E isso é o que vale.
*(Companheiro Jesus, como mais tarde apurou-se, teve um enterro digno graças a determinada ramificação da Igreja Católica).
(Imagem: Alice Brill, Realejo na Praça do Patriarca, 1953.
Colorizado Por Reinaldo Elias)
Réquiem para um passarinho preto
Ontem, por volta das 19 h, o amigo Jota chegou com um cigarro nos lábios e disse na lata: companheiro Jesus faleceu. Os outros fumantes que estavam debaixo do toldo nessa São Paulo que finalmente resolveu chover indagaram se era fato e como ele havia tomado conhecimento. Através do companheiro fulano, esclareceu ele. Fulano é praticamente o líder dessa pequenina agremiação de voluntários por uma vida melhor, senão a vida dos outros, a nossa, e a única coisa que descobrimos nesse incrível paradoxo do voluntariado é que quando nos ajudamos, ajudamos os outros também. Simples assim. A vida do Jesus também era simples, podendo ser resumida da seguinte forma: ele não tinha nada - nem pessoas, nem pertences, moradia ou ocupação.
“Tu tens a ti mesmo”, teria dito Krishna para Arjuna.
Falar sobre isso contando lorota é muito fácil. Complicado é chegar na comunicação real, a do âmago, porque afinal quem quer sair para fora é o âmago e não a conversa fiada.
Sob o toldo, nas cercanias da Lins de Vasconcelos, falou-se por monossílabos e sentiu-se, com pouca definição, o impacto da informação trazida pelo amigo Jota.
O passarinho preto, quando abria o bico, emitia um piado confuso, de difícil absorção não só pelo conteúdo como também por um problema fonético. Membros mais antigos da ONG por uma vida melhor dizem que ele “está assim” há 30 anos. Estava. Assim como? Em dias bons, com calça, sapato, cinto e camisa, às vezes boné e quando chovia, guarda chuva. Em dias ruins, desmazelado, cambaleante, choroso, não raro incômodo. Em dias bons, alinhado, o retrato do cidadão brasileiro dos anos 50, das fotografias antigas, dos filmes antigos, o transeunte anônimo subindo no bonde, o mesmo biotipo. Nos dias ruins, personificava o estereótipo do presente, já estamos todos fartos, colado e copiado nas esquinas, becos e portas de botecos inóspitos pelo país inteiro.
Pelo que se sabe, passarinho preto teve uma existência pautada no caminho inverso do mote “eu quero ter milhão de amigos”. Nalgum ponto da trajetória teve uma mãe que trabalhou como empregada doméstica no entorno do Jabaquara e noutro ponto ele mesmo foi carregador de bagagens no aeroporto de Congonhas.
Com que idade ele partiu, eu também lhe pergunto. Quiçá alguns pontos além dos 60. Sob o toldo ficou-se sabendo que ele fraturara o crânio depois de uma queda, próximo ao metrô Ana Rosa.
Pessoas diziam que você, passarinho preto, vivia num mundo imaginário. Bom, até ontem eu perguntaria: quem não vive? A questão é que ontem me deparei com a informação de que toda alma em busca de evolução chegará ao estágio da compreensão maior do famigerado Todos Somos Um através da seguinte fórmula: você poder ser eu em outra dimensão.
Hoje, na banca, (utilizo a banca para adquirir bastões de nicotina), ouvi um cidadão dizendo para outro: o verdadeiro nome da Cracolândia deveria ser Cachaçolândia. E mais: as autoridades erraram, porque agora espalharam aquilo que estava concentrado. Ora, não deixa de ser uma hipótese. Também hoje, estampado na primeira página de um jornal em letras garrafais: “maioria dos habitantes da cidade quer sair”, ou coisa que o valha. Esse chega a ser um apelo quase anímico. Existe um “não agüento mais” impresso como uma marca d’água no semblante da maioria. E não é pra menos. Cada espaço vago, que poderia transformar-se numa praça ou pracinha, num recanto de lazer e cultura, com assentos confortáveis e um pouco de silêncio, dá lugar ao de sempre: concreto para espremer gente. Somos, na verdade, prezado passarinho preto, legiões de espremidos divididos em castas sutis com diferentes graus de apinhamento e suportabilidade com relação a esta congestão barulhenta, ostensiva, sem a menor graça, sem a graça até de uma anedota de salão.
Ao que parece, você conseguiu o tíquete de saída. E agora me lembro do filme “Nosso Lar” e meu mundo imaginário concebe a sua figura recebendo o acalanto dos vossos, que partiram antes, talvez na mesma toada de pouca fortuna e que hoje concluem com sereno regozijo que tudo, afinal, não passou de um teste e que a verdade não está aqui e sim lá. Tal pensamento me conforta.
Nesse instante confesso, e só daria para confessar nesse instante e não noutro, que sua presença às vezes me incomodava, somente pelo fato de que o me incomodava mesmo não era a sua presença e sim a sua solidão. Chega-se num ponto, durante a caminhada, em que uma série de mitos cai por terra e o campo das possibilidades parece tangível como uma árvore frondosa - a partir de então some dos lábios a afirmação: isso nunca vai acontecer comigo. Não senhor. A gente fica em silêncio (silêncio protege, sabia?) e tece a proteção para o perímetro, cientes de que não controlamos absolutamente nada.
Para o leitor, a título de esclarecimento, a ONG não tem estatuto de ONG e tampouco recebe ajuda material de quem quer que seja. Trata-se de uma modesta agremiação de voluntários, existente nalguns logradouros da megalópole, e voltada apenas para o autoconhecimento e alargamento da consciência. Assim, inexiste qualquer controle de seus membros ou registro dos mesmos. Assim, o companheiro Jesus, que ninguém sabe se era nome, sobrenome ou apelido, foi enterrado como indigente.*
Seu xará, o Mestre, andava pelos povoados esclarecendo as almas para o Despertar, e alertava que este só acontecia pelo auto exame.
Leva tempo. Os Lá de Cima sabem. Cá embaixo ficamos conformados, atônitos, passivos, ferrenhos ou brandos, alertas ou vagos, tentando, buscando, espero que este réquiem lhe faça alguma justiça, porque eu, dentre outros, sou testemunha de que você tentou. E isso é o que vale.
*(Companheiro Jesus, como mais tarde apurou-se, teve um enterro digno graças a determinada ramificação da Igreja Católica).
(Imagem: Alice Brill, Realejo na Praça do Patriarca, 1953.
Colorizado Por Reinaldo Elias)