O SERENEIRO

 Com o dom que Deus lhe deu, o magrizel não precisa de artifícios violonísticos, bandolinísticos e flautísticos para cantar. Canta sozinho.
 ..." - Canta a capela" - como dizem os entendidos.
 Chegou aqui em meados de agosto e já cantando, abrindo o buahbuah de manhã, pausando, entrando pela tarde, pausando, concluindo a cantoria à noitinha, escurecendo.   
 Quase no finzinho da primavera, faltando um mês, mais ou menos, resolveu aumentar a cantoria: resolveu fazer serenata.
 ...Noites enluaradas ou não, estreladas ou não, o Canelas pôs-se a cantar na madrugada (qual bom habitué, lá pelas três, três e quinze, quatro, quatro e quinze), horas em que, teoricamente, todos nós deveríamos estar no segundo sono, acomodados nos braços do solícito Morfeu.
 (...)
 Vieram as chuvas.
 O verão chuvoso, que tem deixado São Pedro enlouquecido porque suas torneiras velhas necessitam que se lhes troquem as carrapetas (os pequenos bazares do céu estão sem estoque, tanta é a procura dessas simples, mas indispensáveis peças), o verão chuvoso, dizia eu, não significou o cessar fogo das apresentações-solo do inefável Canelas, que  continuou na mesma toada.
 Chovendo mais que no filme "Dançando na Chuva", onde o caminhão-pipa dos bombeiros entrou como coadjuvante só para molhar o Gene Kelly, nem assim, o nosso preclaro amigo Canelas se deixou vencer, provando que seu casaco justo, que veste sua magreza e que dele não se desgruda, é de impermeável melhor que o do bailarino, pois, segundo os biógrafos hollywoodianos, o artista acabou se resfriando no set, saindo das filmagens com febre alta. 
 (...)
 Eis que de repente, numa dessas últimas madrugadas insones, dei-me conta de que o Canelas não cantava. Retrocedi, virei três páginas do cérebro e constatei que não vinha cantando a boas três noites. "Trancafiaram o Canelas, trancafiaram o louco!" - foi o que me passou na turbina. Logo em seguida: "Pronto, 'tá com uma bruta pleurisia! Vai morrer!"...
 Fiquei nesse rema-rema até quase o dia amanhecer. 
 ...Adormeci.
 ...Levantei-me como se tivesse feito uma lavagem cerebral. Enfiei-me nas pequenas coisas a resolver, esquecendo-me do Canelas, indivíduo igual a tantos que à maioria não importa, se está vivo ou deixou de viver.
 ...Como me julgo pertencente à minoria dita "preocupada", esqueci... Esqueci, simplesmente, como sói acontecer aos que seguem a minoria.
 ...Deixei de lado o Canelas.
 (...) 
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 Numa tarde, descendo a ladeirinha do adro da igreja, ouvi um ruído e me virei.
 Quem me apareceu? 
 ...O Canelas! - fininho, no seu casaco impermeável apertado e sua cara de Frank Sinatra imberbe.
 Antes que eu pudesse me dirigir a ele, fui saudado com uma bela cançoneta.
 ...Esses canelas-finas!...
 ...esses sabiás-laranjeira!...

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Jan, 21.2012