Quem sai nunca mais deixa de entrar
É mentira dizer que não me arrependo de nada do que fiz na minha vida. De que se pudesse, voltava a fazer tudo de novo exactamente da mesma maneira.
Apesar de não poder fazer nada por isso, vivo aqui e agora e não ali e então, arrependo-me de ter saído da ilha para a América. Isto porque, quando o fiz, imaginem lá, nunca mais deixei de entrar na Ilha.
Nunca deveria ter saído. Mas, não me irei culpar deste passo. Como poderia evitá-lo se a saída foi sempre inevitável desde o princípio?
Desde que via filmes americanos e sonhava com as coisas que via nos filmes sobre a América. Desde que via as sacas cheias de roupa da América que me faziam sonhar com a América. Desde que via os calafãos nas festas das paróquias e eu sonhava com aquilo tudo para além da ponta da ilha.
Quem não escorregaria num momento de fraqueza? Muitos, muito mais fortes, escorregaram, muito menos eu que sempre tive a fraqueza da curiosidade.
Escorreguei. Devo dizer que cheguei à América no Inverno. Na rua, fora de casa, lá na América, aquilo parecia o frigorífico da minha casa nos Açores. Ninguém saía a pé. Só de carro.
Dentro de casa, onde toda a gente permanecia como galinhas no galinheiro, aquilo parecia um forno. No Verão, foi o contrário. Dentro de casa, era frio quase como se fosse o Inverno, lá fora, era como se fosse o forno do Inverno dentro de casa. Isto faz sentido na cabeça de um açoriano? Não, não faz, por isso é que nos chamam greenhorns. Novatos.
De Inverno, parecia uma cebola. Sentia-me uma cebola. Via-me como uma cebola em movimentos de play forward e de rewind. Descascava-me ao entrar nos autocarros para ir e voltar da Universidade e cascava-me ao sair dos autocarros na ida e na volta.
Quase sem excepções, isto acontecia de Setembro a Maio, três vezes na ida e três vezes na volta. Acordava às cinco da manhã, atirava-me ao tempo lá fora. Sobrevivia os primeiros dois quilómetros antes de esperar pelo primeiro autocarro. Tomava o primeiro, esperava pelo segundo, esperava pelo terceiro, andava a pé mais dois quilómetros. Levava nisso, quase três horas.
Claro que aprendi a dormir de olhos abertos. Sentava-me na primeira fila da sala e dormia toca a dormir de olhos abertos. Valia-me de um pequeno gravador disfarçado dentro da mochila para na volta a casa seguir a aula.
Quando dormia de olhos abertos, sonhava com a minha terra. Tinha uma inveja de morte dos meus amigos da escola primária que haviam ficado atrás tanto como, quando voltei, percebi, eles sentiam inveja de mim por eu ter ido para a América.
Preferia nunca ter sabido quem era Walt Whitman ou Faulkner e ter ficado na MINHA TERRA. Assim mesmo com letra maiúscula.
Nunca gastei tanto a vista olhando para um calendário como lá. Riscava um a um cada dia que passava. Contava cada dia com a ânsia de quem gastou o dinheiro do último ordenado a meio do mês e deseja que o ordenado do próximo mês chegue ali já.
Para que é que eu precisava de ouvir a Sinfonia do Novo Mundo numa paisagem nevada de Winchester County, em Nova Iorque? Bastava-me ouvir a Banda dos Cães atrás da Procissão do Coração de Jesus.
Que sorte têm os meus amigos nos Açores. É a altura dos Espírito Santos. Estão a namorar e a jogar ao bolo nas despensas e eu aqui. As raparigas daqui têm um olhar igual ao dos rapazes lá nos Açores: atiram-se a nós aqui como a gente se atira a elas lá. Para que é que eu precisava disto? Bastavam-me as de lá.
Tenho três trabalhos, estudo e venho para casa fazer comida e lavar loiça. Lá não precisava, a mamã fazia tudo. Só para saber o que os filmes diziam? Ou de onde vinham as sacas de roupa?
Tens meia hora para comer. Dez minutos depois, o altifalante chama por ti: Mário o tear n.º 5 precisa de mais linha!
E eu que declarei não ser comunista e não pertencer a nenhuma organização marxista!! Estou arrependido. Que é que faço aqui?
Carros, aparelhagens estéreo, discos e mais discos, um armazém de teres e haveres que só via nos filmes mas que nunca cobicei nos filmes.
Ao menos deveria gostar daquilo, mas nem daquilo gostava.
Gosto de livros, forte desgraça a minha, leio e guardo os que compro por todo o lado: feiras e livrarias. Dou por mim e tenho umas prateleiras de livros, livros a acrescentar aos outros que ficaram na ilha. Para que preciso disso?
Nunca deveria ter lido o que li: só me fez mal. Bastava-me o que lera na ilha. Estou mais que farto de carregar livros: nos regressos à ilha e nos refluxos da vida nas ilhas.
Mas, há sempre um mas, apesar de estar arrependido como uma Madalena, mais boca para fora do que boca para dentro, de estar dividido entre o lá e o cá, por vezes de uma forma quase psicótica, só entrei na ilha porque saí da ilha. Mas isso dói. Ai se dói.
Mário Moura
Ribeira Grande 15 de Setembro de 2011