Trabalho ou pesadelo
Cemitério Jardim da Paz, domingo, dia 14 de maio de 2000, dez horas da manhã.
Há tempos, em um túmulo recém aberto neste cemitério, observei sinais de umidade interna, soube da existência de drenos, porém ficou uma pergunta: Para onde conduziam a água?
Precisava presenciar a abertura de um túmulo inundado, assim teria alguns subsídios para minhas conclusões.
Nesta manhã tive a oportunidade, fiquei observando o trabalho. A grama e a primeira laje já tinham sido retiradas. Logo foi retirada a segunda e pude ver a inundação, pelas marcas deixadas nas paredes, concluí que o nível da água já estivera bem mais alto. Após algumas perfurações para escoamento do líquido, começa a ser retirado o lacre da terceira laje.
Um senhor chega ao local e, passa a comentar e criticar a inundação, então perguntei-lhe sobre a pessoa ali sepultada, disse que era seu pai.
Vendo que a última laje logo seria retirada e, pressentindo o que aconteceria, passei para o outro lado, onde podia ficar de costas para o vento frio, que vinha do leste.
É retirada a última laje, entre o líquido putrefato, vê-se o caixão. Um dos trabalhadores propõe retira-lo dali para um local mais afastado, onde seria aberto porem, o outro fala da possibilidade de soltar-se o fundo, já deteriorado.
É aberto o caixão, deixando ver a tétrica remanescência de um ser humano, a realidade.
As mãos com os dedos entrelaçados descansavam sobre o peito. As roupas conservadas, o terno e a gravata tornavam a imagem mais estarrecedora, mostrando o triste contraste entre o que nos faz parecer e o que realmente somos.
Do rosto, a morte fizera a mais eloqüente e aterrorizante imagem de sua vitória.
O filho entra em pânico vira o rosto, afasta-se e chora.
O liquido putrefato, mistura de água e carne humana decomposta salta no rosto de um dos trabalhadores, ele limpa com a manga do macacão azul onde lia-se “ Governo de ação ” e na parte das costas a frase “Cachoeira limpa cidade saudável”.
Observando aqueles operários, dentro da cova repugnante, misturados a podridão, respirando o nauseante odor, imediatamente pensei no salário deles e em silencio o comparei com o salário dos políticos e de quem projetou tudo aquilo. Contemplando suas mãos humildes e anônimas naquele efêmero labor, lembrei das mãos cheias de anéis, que durante as solenidades das inaugurações, completam o eufemismo dos discursos com a inutilidade de seus gestos.
Com uma barra de metal pontiagudo perfuravam o fundo do túmulo, enquanto o líquido lentamente escoava.
A imagem e o odor dissipado pelo vento não desviavam minha atenção.
Aquele líquido para onde estava indo? Só teria dois destinos, o lençol freático ou a sanga próxima e depois o rio.
Voltei para o almoço, tenho facilidade para bloquear emoções. Enquanto comia pensava no almoço daqueles trabalhadores.
Tudo isto mostra a importância da cremação.
Por isto quando eu morrer quero que retirem do meu corpo tudo que for aproveitável, queimem o que restar e, lancem as cinzas ao vento, para adubar a terra. Assim poderei renascer no verde da relva e no colorido das flores. Sepultem apenas os meus erros e os meus defeitos.
E se meu espírito puder escolher um lugar para morar, por certo será o coração de alguém que me compreendeu e me amou.
Acioly Netto - www.guiadiscover.com