Um mergulho no inesquecível
A vida adulta pode ter muitas vantagens em relação à infância. Mas tem também muitas desvantagens. Perdemos uma certa visão infantil que nos mantém vivos e esperançosos no futuro. O que perdemos é a capacidade de olhar o mundo com a inocência das crianças, ver as coisas com o frescor da primeira vez, olhar sem preconceitos que nos aproxima de aventuras sem julgar os riscos inerentes a cada situação e sem atribuir valor ao que quer que seja. Esses são os maravilhosos momentos exclusivos da infância que nós, os adultos, conspurcamos com nossas advertências e conceitos de pecado. Ás recomendações de cuidados são incompreensíveis e acabam por transmitir a insegurança. Mas, enquanto permanece, as atitudes intimoratas das crianças produzem momentos inesquecíveis a serem lembrados por muito tempo.
Já chamei a esses momentos, no todo, de “os dias do encanto”, já escrevi vários contos em homenagem a eles, pois se há alguma felicidade na vida é, certamente, a decorrente dessa visão despreocupada das crianças que nos proporcionam tantos momentos inesquecíveis que ficam soterrados na memória alimentando o sonho do paraíso perdido. De vez em quando uma visão, um cheiro, um rosto, uma voz do presente faz emergir algum desses episódios, e lembramos, com saudades, da nossa infância.
E, é claro que dependamos da memória, esse software pessoal que carregamos pela vida, e ao qual queremos manter a qualquer custo, porque dela depende a nossa própria individualidade. E como as memórias falham, como elas se diluem com o tempo, um rosto querido e há muito tempo não visto vai se esmaecendo, se apagando, ficando uma figura vaga e cheia de mistérios. Mas a voz é quase imutável, o passar do tempo quase não a altera. E foi, exatamente uma voz conhecida que me chamou a atenção. Escutei o meu nome, no meio da cidade. Virei-me e encontrei um velhinho de olhar brilhante, com o crânio quase inteiramente calvo. Parecia um tio que não via há muito tempo. Mas a voz era familiar. Era o Michel, velho amigo da turma da rua de minha infância.
Eu me lembrei, instantaneamente, do Grajaú, década de cinqüenta, as partidas de futebol de rua, as escaladas do Bico do Papagaio, as tamarineiras da rua abrigando as andorinhas e o verão.
Como conversar com alguém tão distante? Com muito esforço lembrei de rosto de Michel, de suas feições infantis, do seu cabelo outrora farto. Em rápida resenha colocamos em dia as nossas vidas. Até que perguntei:
- Diga, Michel, como foi que você me reconheceu?
E ele respondeu:
- Eu não posso esquecer o melhor beque que já vi jogar na minha vida.
Fiquei extasiado com a sua resposta. Afinal, eu não jogava tão bem assim. Percebi que eu era um herói para o Michel. E que ele, apesar da idade, tinha, ainda, a capacidade de mergulhar no inesquecível, no mar de lembranças infantis, com o olhar de criança.