DDD - Diário de Derrotas [17]

07h15m

- Filha da puta.

- O que foi?

- Sabia!

- O quê?

- Que quando eu botasse o cu pra fora de casa, daria vontade de cagar.

- Ai...

07h59m

- Caralho.

- Que foi?

- Oito horas, era pra gente estar lá na Luz já...

- Foda.

- Aff.

- Que foi?

Um fedor de merda grotesco.

- Foi você? - Ela olha pra mim, com seus olhinhos castanhinhos.

- Claro que não! Não faço essas coisas em lugares fechados.

Continuou me olhando.

- Que foi?

- Nada não...

08h10m

O trem para no Brás. Estamos perto da porta. Seremos os primeiros a sair. A porta se abre. Corremos em direção à escada. O outro trem, com destino à Luz, está chegando à plataforma. Se perdermos ele, estaremos na merda. Mais ela do que eu. Portanto, corremos escada acima, comigo parando diante de uma gorda que resolveu ficar bem no meio da escada; nem do lado direito nem do esquerdo: no meio.

- Parasita filha da puta. - Resmungo, e enlaço os dedos da minha pequena, que ri da minha rabugice. E corremos escada rolante abaixo, conseguindo entrar no trem já cheio.

08h15m

Lá de cima da escada rolante desemboca na plataforma da Linha Amarela eu vi o cidadão parado bem na porta que costumamos entrar. Já preparei um beliscão digno de torniquete e algum palavrãozinho. Chegamos à porta, e o cidadão está à nossa frente. Eu mal consigo disfarçar que já sei o que vai acontecer, e isso chama a atenção dela, que percebe o que acontece e olha, e mal contém um sorrisinho.

- Sabia, biscat.

- Hihihihihihi.

Ela consegue um lugar vago e se senta. E entre o monte de pernas, intercalando olhares pra minha cara com jeito de criança que quer pirraçar, ela procura o cidadão barbudinho com cabelinho enroladinho, o típico hipsterzinho loshermanitinho playboyzinho intelectualzinho.

Eu, por minha vez, procuro algum rabo pra contrabalancear a pirraça. Nada.

Não é o meu dia.

08h35m

- Quando você comprar, me manda um e-mail? - Ela pede, ficando na ponta dos pés, com as mãos nos meus ombros, dando uma bitoquinha.

- Não.

- Ou então coloca no Facebook e me marca?

- Nem fodendinho.

Na Consolação, ela vai para um lado e eu vou para o outro. O trem dela chega, e ela me abraça e me da uma bitoquinha e um cheiro; tudo na pontinha dos pés.

Nhoin.

Assim que ela entra e eu tomo meu rumo, quase caio pra trás com uma ruiva natural.

Ainda olho pra trás, procurando minha garota, pra tentar devolver a pirraça; nada.

Na Consolação cada um vai para um lado, e é assim que as coisas terminam.

08h50m

Estou basicamente caindo de fome, e não tenho tempo pra comer. Quer dizer, tenho, mas não tenho.

É segunda-feira, e provavelmente terei um dia árduo de trabalho, e ainda tenho que resolver as pendências da sexta-feira - e tenho que resolver o grosso em uma hora, no máximo, e tentar conseguir um intervalinho com a chefia pra ir na FNAC comprar o ingresso pro show do Los Hermanos.

09h30m

A calamidade é a seguinte: não encontrei os tokens para acessar as contas que tomo conta. Faz parte do meu script tirar os dois extratos de cada uma: uma cópia pro chefe, as outras pra eu lidar com os créditos feitos; a partir disso é que é definido se terei um dia de corno ou não.

10h00m

Eu, que tinha planos de chegar às dez na porta da FNAC, cá estou.

Acabaram de encontrar os tokens.

11h35m

Algumas pessoas simplesmente dormem com uma voz do além buzinando em seus ouvidos que o dever delas no dia seguinte é foder com a minha paciência; o subconsciente delas absorve tudo e, no dia seguinte, lá está ela, espicaçando a minha boa vontade com cretinices frívolas e constatações desesperadas e equivocadas.

12h35m

Agravo de instrumento, diligências de Oficial de Justiça, Procurações, substabelecimentos, licitações, e-mails mil, créditos misteriosos, dor de cabeça de fome e estômago se revirando e o maldito calor, sendo a cerejinha do meu bolo de derrota.

13h05m

Fico parado na porta do prédio fingindo que estou esperando o farol fechar e que estou em dúvida do rumo a tomar, quando na verdade fico vendo as bundas que vêm e as bundas que vão, querendo pegar todas, morder todas, bater em todas. Opto por almoçar no restaurante chinês, que é o mais próximo da FNAC.

13h12m

Toda vez que cruzo essa porta eu penso: mas que merda vim fazer aqui? Já vi pentelhos no meio do arroz mais de duas vezes, a batata frita é rançosa, o feijão é anêmico, o rolinho primavera é azedo e esse china que traz as coisas tem cara de quem não lava a mão há pelo menos dois meses... Deve ser por isso mesmo que venho, afinal. É.

13h20m

Não consegui comer muito. Meu intestino está muito cheio de merda dura, e cada colherada que eu dou, o chorume disto poreja no meu rosto. O desconforto é enorme.

13h37m

Estou na fila da FNAC há cinco minutos, e só tem duas pessoas na minha frente, além das duas patricinhas que alugaram o caixa. Daqui posso ver o logotipo da Apple que todo mundo conhece e que pouca gente que conheço - inclusive eu mesmo - pode ter em qualquer produtinho que seja. É a vida...

13h43m

Continuo na fila, impaciente, procurando algum letreiro que indica onde fica o banheiro, quando uma mulher com crachá aparece informando que os ingressos pra sexta-feira estão esgotados e que pra quinta só sobraram os da entrada inteira. Ela vai além:

- E tá cento e setenta a inteira, mais vinte por cento de...

Eu praguejo mentalmente.

Eu compraria ingressos da sexta-feira.

Pagando meia-entrada, já com muito choro e dor.

Ponderei.

Daria duzentos reais.

Vezes dois.

Saio da fila.

13h47m

Estou brincando num iPad. É um joguinho que um passarinho fica arrastando o peito por colinas, descendo e subindo, idiotamente descendo e subindo, comendo alguns mosquitos quando você aperta a tela. O preço desse negocinho está aqui do lado, e não quero olhar, porque sei que vai doer. Meu passarinho babaca não consegue comer muriçocas o suficiente e morre. E eu vou atrás de um banheiro.

13h58m

Estou subindo a escada rolante da loja, e está chovendo, e estou sem guarda-chuva. Vou tomando chuva e apertando o olho do cu até a Brigadeiro, e penso em ir na livraria de sempre saciar minhas necessidades humanóides. O que aconteceu é que o banheiro da tão conceituada loja deixaria o banheiro de uma rodoviária no bolso, de tão escrotinho. Ou é que sou fresco demais pra essas coisas. É, deve ser isso. Devo ser fresco demais até pra exercer funções básicas do meu corpo.

14h20m

Chego e tem um e-mail pedindo urgência em algo que poderia ter sido pedido em até dez dias antes. Mas, tudo bem, eu deixo de escovar os dentes e começo a trabalhar no que me foi pedido. Também ligo pro outro andar e peço para segurarem o rapaz que - meu sucessor, inclusive - paga as paradas.

Vou copiando e colando dados; vou recortando e colando dados; vou inserindo valores, códigos, CNPJs, Varas (!), nome de partes, números de processos, blablablá, blablablá.

Por fim, termino a coisa, entrego ao rapazola e fico por um tempo olhando a chuva caindo forte.

É... Já tomei muita chuva dessa com um envelope cheio de contas pra pagar, com dinheiro alheio pra sacar; tomei muito sol; muito vento; me fodi pra caralho, já...

Algo me chama a atenção na tela à minha frente.

Está faltando algo em uma guia de dois mil reais.

Algo crucial

- Puta que pariu!

E saio correndo cinco andares espiralados abaixo, e saio na chuva acelerado, deixando um rapaz que falava comigo enquanto eu tentava achar o crachá no bolso falando sozinho.

14h37m

Estou diante da porta giratória do banco, e essa filha da puta não quer me deixar entrar.

- Desaprendeu, hein, grande? - Brinca o segurança.

Lá dentro, o meu companheiro de trabalho já está no caixa, com a moça passando tudo errado, e por culpa da minha desatenção, fruto da pressa, que foi fruto do relapso de terceiros. Desgraça!

14h45m

Tudo resolvido no banco. Agora tomo mais chuva de volta ao escritório.

14h57m

Separei algumas coisas pra levar pros requisitantes. Tiro a escova e a pasta de dente da mochila e vou me encaminhando ao banheiro, quando o telefone toca e é pra mim. Pedem urgência na coisa que devo entregar. O problema é que deu erro em mais alguma coisa no banco e o que eles querem está lá, de novo; o rapaz teve que voltar lá, tomando mais chuva no rabo por causa dos outros; e eu sei bem como é isso.

- Já já eu subo.

Mas ele entra pela porta com as coisas em mãos. E eu subo lá.

15h47m

Acabei de conseguir escovar os dentes, depois de umas duas ou três subidas e descidas e discussões cabeludas.

Continuo querendo evacuar o almoço do domingo. Ou do sábado. Não lembro. Sei que passei o final de semana inteiro com banheiros mil à disposição mas não houve movimentação intestinal alguma. Daora a vida.

18h10m

Meu mau humor é completo, quase uma obra de arte. Schopenhauer ficaria com inveja. Sei lá se ele era mal humorado.

Meu celular toca, e não estou.

Meu telefone toca, e não estou.

Chega e-mail pedindo coisas, e não estou.

Chega e-mail pessoal torrando paciência, e não estou.

Não estou. Não estou.

Tô não.

18h23m

- Oi?

- E aí?

- Sim?

- Onde cê tá?

- Na Augusta, e você?

- No trampo ainda... Comprou o ingressão do Lobão?

- Siiiiiiiim!

- Vish!

- Aham.

- Tá indo embora agora?

- Só vou comer, e você?

- Tô saindo. Vou de trem?

- Me espera?

- Daqui cinco minutos na Consolação?

- Ah, espera eu comer aqui.

- Aqui onde?

- No Vegacy...

- Ih, nem fodendo. Preciso ir. Voando.

- Aff, que pressa é essa?

- O charuto tá no beiço, beibe!

- Nojento.

- Tchau.

- Beijo!

18h33m

Estou em uma das cinco filas das catracas da Estação Brigadeiro, e eu nunca vi essa porra tão cheia. Não chegarei em casa hoje, só sei disso...

18h42

Estou fazendo a transferência entre as Linhas 1 e 4, e eu nunca vi essa porra tão cheia. O ar - que já nem é mais ar - tem aquela coisa pesada, rançosa, úmida, grudenta, fedorenta. Milhares de pessoas por metro quadrado, ou coisa assim. E eu constato que são pessoas como eu. Somos todos iguais. Conformados. Correndo atrás de prejuízo que nunca será sanado. Um rebanho que consente que uma minoria nos chute no cu e limpe o próprio rabo com nosso dinheiro. Eu imagino um protesto com todas essas pessoas que se dispõe a se odiarem nessas filas, e imagino as tropas de choque sendo esmagadas e/ou aderindo à causa; todos tocando fogo no Senado, apedrejando deputados em praça pública, estuprando vereadores trambiqueiros com caibros esfiapados e etc.; mas isso nunca vai acontecer... Está todo mundo muito preocupado com as contas e com a faculdade e com o carro e com a xoxota molhada da vizinha ou com o iPhone ou com o fodeção no reality show. Ninguém quer saber de mudar, não. Só uma minoria que é ignorada. E que eu mesmo ignoro. Sou o pior de todos os que me circundam nesse pedaço de inferno que caminha sobre esteiras rolantes que enguiçam. Porque tenho um pensamento cristalino desse, bonito em sua utopia, mas que minguará assim que eu virar a esquina após a escada rolante e o fluxo mais ou menos fluir.

18h55

Enfrento outro sem fim de pessoas. O sem fim de pessoas enfrenta outro sem fim delas. Estamos tentando chegar aos trens da CPTM. Outro pesadelo corriqueiro. Sinto-me meio tonto.

19h10m

Sabe o que me ocorreu agora? Que às vezes uma proteína que não se quebrou é que evita acidentes tempestivos. Esse arrombado aqui que está atrás de mim que me fez pensar nisso. Quando o trem parou na plataforma, formou-se aquela frente de guerra de sempre. Esperei a coisa se acalmar e me esgueirei pelas laterais - pois sempre ficam umas biscates na porta esperando o próximo -; uma vez lá dentro, vi um espaço bacana no corredor, PORÉM, estava esse cidadão segurando na barra de ferro com a mão esquerda, largado de costas na outra, e com o cotovelo direito obstruindo a passagem; cutuquei-o, pedindo licença, e ele não se manifestou; repeti, nada. Segurei no cotovelo do filho da puta e o empurrei pra cima e passei pisando no pé. Encostei do lado dele e ficamos nos encarando. A minha vontade, a minha mais singela vontade foi de deitá-lo na porrada ali mesmo. Mas, sei lá.

19h20m

O infeliz desceu no Brás. Agora, aqui, no Tatuapé, subiu uma rapariga cheia de sacola. Estou entre ela (à minha esquerda) e uma moça magra (mas gostosinha) e feia; uma espinha amarela na bochecha dela me encara o tempo inteiro. Essa da esquerda, essa sacoleira de cabelo descolorido, oleoso e com buço, está com um perfume que já escrevi em uns mil textos que não suporto, de modo que tenho que manter a cabeça virada pro lado direito, bem pra espinha que grita, pedindo pra ser espremida.

19h52m

Chegamos rápido no Metrô Itaquera. Hoje não teve trânsito, e, afora um vileirinho com o celular ligado na lotação, não tive maiores problemas; desci no ponto e corri pra casa.

20h02m

Engraçado... Estou aqui girando a chave na porta e pensando: acabei de encontrar minha mãe e meu irmão mais novo no meio do caminho, indo fazer caminhada pra tentar emagrecer... E bem a meus pés têm três caixas de pizza e duas caixas de bombom. Muito engraçado.

20h20m

Desisti de ir pra academia porque começou a chover forte. E porque tenho fome. E porque a casa está vazia. E porque faz tempo que não assisto um filme pornô. A minha vizinha - que é atriz pornô, que tem vídeo rolando em YouPorn e os caraio - me lembrou disso ao me dar um "oi" tímido. Gosto dela... Ganha a vida se pendurando com ganchos atravessados no corpo e dando a bunda e pensa que ninguém sabe.

20h23m

Nada que me apraz nesses filmes...

20h24m

Eu escuto barulho de chave na porta. Bem devagarzinho. As luzes estão apagadas. Meus irmãos têm o hábito de chegar gritando, chutando a porta e acendendo todas as luzes. Sinto cheiro de algo estranho no ar. Assalto?

Vou até a porta do meu quarto do sem porta e vejo a silhueta da prima deles e do primo do meu primo, meio que se encaminhando pra dentro do quarto dos meus irmãos.

Os filhos da puta querem meter.

- Que porra é essa aí? - Eu falo.

- A TIA TÁ AÍ? - Ela se adianta, assustada com a minha persona non grata e empata foda.

- O que você acha?

- Ela foi trabalhar?

- Não.

- E onde ela foi?

Fico quieto.

Eles se adiantam em direção à porta. Eu pergunto:

- Onde você arranjou chave daqui?

- Peguei aqui no ganchinho...

- Que ganchinho?

- Nesse.- E apontou pro chaveiro que fica à distância de um braço longo da porta; do braço de alguém como o rapazola, que é alto, mais alto do que eu.

- Bom – falei, sereno como sempre - que essa porra não se repita. Que vão se atracar na puta que o pariu, não aqui.

Ficaram quietos e se foram.

Arranquei a cueca, me enfiei por baixo dos meus lençóis e fiquei ouvindo a chuva açoitando alguma sacola no quintal.

E nada de piriri.

16/01/2011 - 22h38m

Dead Fish - Tudo

Rafael P Abreu
Enviado por Rafael P Abreu em 16/01/2012
Reeditado em 16/01/2012
Código do texto: T3444770
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