Iourpésporteplisi

Duas semanas.

Este era o tempo que Rita ocupava na recepção da empresa, trabalhara anteriormente como guardete, inspecionando bolsas a entrar e sair. Neste período habituara-se a manter uma atitude polida mas seca, “Seo” Antenor chefe de segurança apregoava semanalmente que esta era a atitude correta e desandava a falar como um padre em homilia desesperada.

Apesar de Antenor e sua preocupação exacerbada, Rita criara vínculo com Laura, e ao sair da empresa esta indicara-lhe o posto. O que para muitos não significava muito mas para Rita garantir-lhe-ia um aumento que apesar de in-substancial fora mais do que bem-vindo, e o alivio de não mais inspecionar as bolsas e mochilas alheias. Jamais ocorreu nenhum incidente em relação a isto, mas Rita percebia o descontentamento de alguns e pior, a vergonha de outros se sentindo violados ao expor seus pertences.

Laura dera-lhe apenas uma instrução especifica: “libera logo os gringo”. Não rara era a visita de estrangeiros à empresa e estes eram facilmente reconhecíveis, ou alto demais, ou loiros demais, ou apenas o modo como chegavam quase unanimemente puxando malas com rodinhas, abraçados a notebooks. Não haverá problemas – garantiu-lhe Laura – basta pedir o passaporte, ler o nome e consultar no sistema, eles só chegam com visita agendada, então liga no ramal de quem agendou a visita e pronto.

A primeira vez Rita até se preocupou, um sujeito vermelho e baixo chegou soltando um “bom-dia” carregado com sotaque de alguma parte do mundo, Rita soltou um “Your Passport, please”, o homem como um sorriso tranqüilo passou-lhe o documento, Rita abriu, leu e teclou o sobrenome McAdam, deslizou os olhos pela tela consultando um ramal, em momentos alguém veio de dentro da empresa, falando, ou melhor gritando um inglês que o homem vermelho entendeu apenas por boa vontade, passaram pela recepção e sumiram nas entranhas da empresa bem antes do falatório de ambos deixar de ecoar.

A experiência concedeu a Rita paz para recepcionar todas as visitas que a empresa recebia, acostumou-se a identificar os estrangeiros não apenas pela bagagem, mas também pela falta ou presença de algo que nós brasileiros temos, seja lá o que for. Na verdade, bastava um olhar para o visitante que ela disparava em pedir o passaporte, dizendo algo que com o correr do tempo se tornou apenas: “Iourpésporteplisi”.

A manhã estava como todas as outras, Rita lendo distraidamente um livro, escondendo-o com o corpo da câmera pela qual era constantemente vigiada por Antenor, pouco tivera a fazer até então, apenas liberara a entrada de um rapaz da contabilidade que esquecera o crachá, seria um dia sem sobressaltos até a chegada do homem vermelho.

Rita se recordava dele, apenas por ter sido o primeiro estrangeiro a atender, soltou o Iourpésporteplisi, sendo prontamente atendida. Contudo desta vez McAdam, não aguardou apenas sorridente, começou um bombardeio torrencial de palavras, Rita mal conseguia digitar para consultar o Ramal e aquele homem não se calava prosseguindo em um falatório continuo ao qual Rita não captava uma pausa sequer entre as palavras, apenas agitava a cabeça concordando incerta entre interromper com um “Dontispiquinglixi” ou apenas concordar sorridente.

Foi claro o alívio dela quando o homem se calou, quase chegando a liberar um suspiro, mas ela percebeu que o homem a encarava fixamente, estava aguardando uma resposta para um pergunta que Rita sequer cogitava. Ela abriu a boca e engoliu o ar, estava preste a falar algo quando foi interrompida pela fala alta de alguém surgindo por detrás da recepção, McAdam sorriu e se voltou inteiramente ao novo interlocutor, ambos desapareceram dentro de empresa.

Rita ainda pensou em perguntar o que McAdam dizia afinal, mas este ímpeto perdeu-se entre os cascos e carícias de Hilda Hilst.