APETITES E PAIXÕES AO ESPELHO

É na hora de fazer a barba, frente ao espelho, que costumo conversar com o meu alter ego. É um papo fácil esse que se dá frente ao outro que mora dentro da gente. O pensamento passa em revista o tido e o havido recente. Quando se tira a barba, com ela vão os erros e os acertos das últimas horas. O Novo não está no rosto, mas essa estampa asseada sempre espera que o "after day" traga consigo laivos de felicidade. Os bons momentos rarefazem as rugas permanentes e o brilho nos olhos aponta para o futuro. A rigor, nunca sabemos o que acontecerá quando se pisa além dos redutos domésticos, ao transpor a porta da rua. Ainda ontem, uma vendedora do tipo burocrático não me vendeu um remédio (do qual necessitava naquele lampejo) por dúvidas quanto ao nome do medicamento que estava escrito na receita médica. E fiquei muito agastado, lamentando por que não fora atendido em minha postulação. Ocasionalmente, já que estávamos num centro comercial, mulher e cunhada me levaram a uma loja pra comprar calçados para elas. Haverá uma festa de formatura daqui a um mês. Acabou que o meu alterado humor esvaiu-se graças a dois bonitos pares de sandálias para o veraneio. É incrível como vivemos guindados ao feliz e ao oposto por atos e coisas... Porém, nem sempre a felicidade é um par de sandálias. Assim como o espelho conduz à tradução dos humores e dos grilos, a hipótese de ter proteção nos pés para o caminho futuro é sempre um alento. Estou pronto para sair à rua com o meu novo par de novidades. Andar no mundo é uma festa amalucada. Homens, bichos e coisas dançam ao sabor de nossos humores. E eu – recomposto – agradeci a desatenção da mocinha atendente de farmácia que, decerto, pensou nas cobranças dos superiores e cumpriu exigências protocolares, certa de que esta seria a única maneira de garantir cosméticos e sapatos novos para a festa que, nos dias seguintes, viesse a fazê-la feliz. O certo, no entanto, é que era necessário garantir o seu emprego. E constato, objetivamente, que os conflitos de interesse garantem a certeza de alguns laivos de felicidade. De inhapa, agradeço novamente à quase-insolência desmedida da comerciária (em me exigir o que era dispensável), o mote para este assunto e a literatice que me surgiu ao espelho. Ponho os pés à soleira da porta e me assalta a constatação de que é assim mesmo. Continuar vivo para rememorar o ocorrido no dia anterior é a salvação. Amealham-se atos e fatos. Corrige-se a explosão do ego. O espelhar-se modula a temperança. Que coisa difícil é essa tal de parcimônia...

– Do livro PALAVRA & DIVERSIDADE, 2011/12.

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