Num lugar que me acalma
Encontrei um lugar que me dá paz, ainda que apenas por pouco mais de uma hora, um dia ou outro por semana.
Um vento agradável passa por mim enquanto caminho sob a cobertura de madeira ruma ao balcão do bar, que fica numa esquina entre duas ruazinhas pouco movimentadas, paro por um instante gozando o frescor da brisa. Antes de chegar ao dono do lugar e pedir o que desejo, paro ao lado duma mesinha de plástico vermelha, digo “Bom dia”, num tom respeitoso e estendo a mão buscando um cumprimento.
O homem afasta os olhos emoldurados por óculos de armação um tanto grossa do jornal que lê e com uma calorosa seriedade responde meu bom dia com outro, um sorriso de canto, um tanto elegante, e um firme aperto de mão. Já muito mais bem humorado dou um par de passos até aquele atrás do balcão, que pica cebolas que exalam um delicioso aroma ao ar, me vê e sorri em minha direção. O sorriso alvo faz com que os cabelos grisalhos em suas têmporas pareçam escuros, devolvo-lhe a saudação com sincero afeto, trocamos uma piada sobre coisa qualquer e faço meu pedido.
Vou ao banheiro enquanto aguardo o que pedi aparecer sobre o balcão de madeira, quando retorno surpreendo-me ao não encontrar nada lá, e aquele que ouviu meu pedido enchendo um copinho de pinga, com cachaça envelhecida, na mesa em que usualmente sento, ao lado do qual já repousa uma garrafa de cerveja, gelada no ponto certo. Agradeço a gentileza do gesto, ganho um tapinha nas costas e acomodo-me na cadeira. Bebo a pinga num só trago, coloco um tanto de cerveja no outro copo e tomo um gole para apaziguar a queimação que desce garganta abaixo; tiro um livro da mala que carrego e antes de abri-lo olho ao redor.
Não é um dia particularmente bonito, várias nuvens cinzentas singram o céu, sendo seu azul visível somente em curtas brechas, as ruas parecem um tanto opacas, a brisa um pouco fria, mas tudo passa a impressão de estar em seu lugar. Poucos carros atravessam meu campo de visão, a distância do trânsito é inebriante, mais até do que o álcool que engulo buscando entorpecência. Ouço o farfalhar das folhas presas às árvores ali perto, não consigo impedir-me de sorrir ao abrir meu livro, tomar outro gole e começar a ler enquanto me afasto daquilo que pesa em meu viver.
Percebo que aquele sentado na mesa ao lado. com pés de galinha no canto dos olhos, cabelos tornando-se cinzas e olhos que transmitem uma rata sabedoria, aproveita daquela tranqüilidade ao seu modo, muito parecido com o meu. Vez ou outra faz algum comentário para o dono do bar, que responde com voz alta e pausada, frisando sua opinião e aquilo que sabe, que está longe de ser pouco, sem parar de trabalhar na produção dos salgados para por a venda em breve, levanta para fumar uma cigarro qualquer e volta a sentar-se frente ao seu jornal enquanto aproveita da solidão em boa compania.
Levanto carregando comigo o casco vazio, chego ao balcão e faço uma brincadeira meio sem graça sobre trocar uma vazia por uma cheia, com muita classe ele diz que o recipiente é por conta da casa mas o líquido sai do meu bolso, resgatando-me de uma piada insossa. Ainda rindo começo a voltar para minha cadeira, no caminho, mesmo ele não compreendendo mais de três passos chamo-o assim, dou de frente com um recém chegado, que empurra um carrinho rosa carregando quem imagino ser sua neta.
Sob o bigode quase branco vejo um sorriso, recebo o desejo de um bom dia e seguro sua mão, sem deixar que sua expressão se altere pede que mande à garotinha no pequeno veículo um beijo, mando dois, ambos rimos da confusão em seus inocentes e grandes olhos. Vejo-o saudar o homem que lava as mãos tentando se livrar do odor de cebolas e condimentos, comenta algo sobre um jogo do dia anterior, aquele que se debruça sobre um jornal expõe sua opinião, eu encho o copo sedento de cerveja e bebo, tanto o líquido quanto o prazer de estar ali.
Um tempo passado e a leitura torna-se um pouco desafiadora, sinto que as palavras gravadas nas páginas teimam em se embaralhar, e com a visão embaçada acabo tendo de reler algumas vezes uma linha ou outra. Mesmo que as nuances do romance deslizem em meio à minha prejudicada percepção não me incomodo, é um deleite este dia.
Um ônibus amarelo carregado de gente infeliz cruza a rua logo à minha frente, em meio a cenhos franzidos e olhares carrancudos não encontro uma única expressão contente na lotação que passa soltando fumaça. Com a chegada de mais um ao local, um baixinho simpático usando um boné surrado e um sorriso honesto, os três deixam de lado o futebol e voltam cada qual para sua atividade, gozo daquilo tudo.
Meu telefone toca insistentemente, por mais que cada fibra do meu ser seja contra atendê-lo sei que é necessário, pouso o copo na mesa com um suspiro e recebo relutante a ligação.
Largo o aparelho na mesa, engulo o que sobra da bebida que passou a ter um sabor amargo, olho em volto e vejo um quadro que até então parecia maravilhoso, um tanto depressivo. O homem que lê o jornal parece cansado a beira da exaustão, aquele que cortava cebolas continua o preparo da comida numa dolorosa resignação, o pequeno vira num gole sua pinga e se arrasta para onde quer que tenha de ir.
Apanho minhas coisas, pago minha conta com duas notas amassadas e rumo ao meu carro, imaginando se vêem tanto tristeza em mim, quanto vejo neles.