Um 'rapaz' muito especial...
Guardo prezadas lembranças de experiências que tive quando morava na roça.
Algumas das melhores tem que ver com o amor que sempre tive pelos animais.
Meu dom de cuidar de bichinhos órfãos ou deficientes resultou em relacionamentos afetivos pelo resto de nossas, ou melhor, de suas vidas.
Uma das mais belas histórias começou um ano antes de minha decisão, já moço, de trocar meu pequeno mundo de sonhos no interior pela realidade dura na grande cidade.
Sempre fui fascinado pelo desvelo das mamães-galinhas ao alimentar e proteger sua prole, por vezes mais de 20 pintinhos. Foi quando uma dessas fofinhas e delicadas criaturinhas adentrou a cozinha de nossa casa de chão, que um tamanco descuidado fraturou sua frágil perninha, marcando o início dessa história.
O sujeitinho precisava de cuidados especiais. Assumi prontamente essa tarefa. A perna sarou, mas ficou defeituosa. Ele passou a andar apoiando-se no cotovelo (ou será joelho?), balançando-se de forma engraçada.
Como sempre, meus pais e irmãos ajudavam a cuidar do bicho, mas a reponsabilidade, a ‘paternidade’ era minha!
Uma das primeiras coisas com cada novo adotado era providenciar um nome para ele. Mas nesse caso específico a indecisão por um nome durou alguns dias, e no ínterim eu me dirigia a ele nestes termos: “Venha, rapaz!”, “Oi, rapaz!”. Todos começaram a chamá-lo de “Rapaz” e esse ficou sendo o seu nome. Ninguém se preocupou com o gênero do novo membro da família, afinal todos os pintinhos são iguais quando pequenos, ‘meninos’ na aparência. Sendo assim, “Rapaz” estava de bom tamanho pois presumia-se que o bicho fosse realmente macho. Ledo engano! Quando ficou ‘adolescente’ e traços distintivos apareceram, aguardava-nos uma surpresa que rendeu muitas risadas: o “rapaz” era na verdade uma moça! Mas, nessa altura do campeonato, não dava pra mudar, e ela continuou sendo “Rapaz”, e diga-se de passagem, nunca reclamou disso.
Os cuidados especiais que eu lhe dava fizeram com que se desenvolvesse entre nós um apego fora do comum. Acostumou-se a comer na minha mão e bater longos papos comigo. A gente dialogava, é sério! E por sinal, como era tagarela! Até ‘cantava’ quando eu lhe pedia...
Quando voltava da roça à tarde, no terreiro, eu chamava seu nome: “Rapaz!”. De onde estivesse ela vinha “correndo”, com seu manquitolar desengonçado, sacudindo-se toda e expressando com exagerados cacarejos sua alegria em me ver!
Eu a treinava e ela aprendeu a fazer coisas incríveis. Sentado num banco de madeira eu batia no joelho e dizia: “Vem!” Ela pegava impulso e pulava no meu colo, uma proeza e tanto para alguém que, além de ser deficiente tinha uma massa corporal pra ninguém botar defeito!
É claro que para chegar a isso teve de treinar duro!
Na hora de se recolher, a galinhada criada solta no terreiro, por instinto de se proteger, costuma encarapitar-se em árvores, cercas, enfim procuram um lugar alto para dormir.
Mas, é claro que a condição física do “Rapaz” não lhe permitia fazer isso.
Para contornar a situação, fiz para ela um jirau, rente à parede da casa, com cerca de um metro de altura, e todas as tardes eu a colocava lá, para que se sentisse segura ao dormir.
Às vezes me esquecia e, quando começava a escurecer, ela saía à minha procura para lembrar-me do compromisso diário. Lembro-me de uma vez em que fui a uma festa e cheguei tarde da noite em casa. Encontrei-a encolhida no chão embaixo do jirau! Coloquei-a na ‘cama’ e me desculpei pela falta. Não dormi direito, com remorso... imaginei por quanto tempo ela deve ter me procurado até desistir!
Um dia recebemos a visita de um tio e eu aceitei o convite para ir morar com ele na capital.
Separar-me da minha querida amiga foi uma das coisas mais difíceis para mim.
Um ano depois, voltei para visitar a família. Logo depois dos muitos abraços na chegada, perguntei pelo Rapaz.
“Ah, depois que você foi embora” disse minha mãe “ ela ficou arisca, quase não aparece, não deixa mais que ninguém chegue perto. Ela agora é mãe, está por aí, cuidando de três filhos”.
Fiquei aborrecido com a notícia e saí procurando por ela. Logo a avistei. Estava de costas, a uns trinta metros de distância, ciscando à procura de comida para os filhos.
Como nos velhos tempos, abaixei-me e chamei: “Rapaz!”
Minha mãe que se aproximara, não podia crer no que via!
Quando ouviu minha voz, o ‘Rapaz’ deu um salto, virando-se, e principiou a correr em minha direção atabalhoadamente, tropeçando, esforçando-se ao máximo que sua perna defeituosa permitia, tal a sua ansiedade, cacarejando alto, e veio aninhar-se em minhas mãos! Passada a euforia do reencontro ela chamou seus filhos que permaneciam à distância, sem entender bulhufas do que estava acontecendo e por que a mãe agia de forma tão estranha!
Daí, os frangotinhos se aproximaram e eu pude notar o tom de orgulho no seu cacarejo como que me dizendo: “Veja, são meus filhos!”
Essa história é lembrada após muitos e muitos anos, quando a família se reúne. Ficou indelevelmente marcada em minha memória e no meu coração como uma das mais gratas lembranças, que agora divido com você, junto com uma recomendação:
Ame os animais, cuide deles, jamais os maltrate.
Experimente como eu fiz e sinta a capacidade imensa que essas maravilhosas criaturas de Deus têm de dar e receber carinho!
Pedro Ornellas