Batatas fritas

O calor estupendo fez com que Jurandismariano desviasse do caminho de casa a fim de passar em um barzinho para se refrescar. Como não era adepto à bebida alcoólica, pede ao garçom um suco de laranja enquanto procurava no bolso do blazer o celular que tocava insistentemente.

A conversa pelo aparelho móvel ocupou o tempo em que o suco foi preparado. Depois de despachar o assunto pendente, saboreou o suco. Tirou o blazer tom marrom e colocou-o no encosto da cadeira do sofisticado bar. Viu mais à frente outro cidadão com uma atitude idêntica. Achou engraçada a sincronia, pois outro cavalheiro à esquerda tirou também o terno. Parecia um desencadear de indivíduos despindo-se do objeto de calor.

Num ímpeto, Jurandismariano se lembra do que havia combinado com seu filho Mário: garantira que passaria para pegar o menino depois do expediente. Olhou o relógio. O tempo declarou-lhe guerra. Seria impossível cumprir o combinado com o filho.

Deixou sobre a mesa uma nota que certamente pagaria o suco de laranja e saiu apressadamente. No trânsito da cidade se dá conta de sua impotência, pois não conseguiria chegar a tempo. Como os carros permaneciam inertes, suspeitou que havia algo impedindo a fluidez, possivelmente acidente ou desvio. Levou a mão no bolso para pegar o celular a fim de avisar a mãe de Mário sobre o possível atraso, mas só então percebeu que esquecera o blazer no barzinho do qual saíra apressadamente e que seu celular ficara no bolso. Pensou em voltar, porém a negativa era óbvia, visto que havia carros por todo lado e ninguém seguia ou voltava. Ouvia um som longínquo de sirene, polícia.

Foi acometido por um súbito estresse e ele percebeu que, embora o ar-condicionado estivesse ligado no máximo, o suor se acumulava na testa. Completamente irritado, mas certo de que não era nenhuma novidade, pois vivia naquela cidade há anos. Jurandismariano abriu a porta do carro e viu uma intrigante cena: uma mulher que estava no carro atrás do seu invadiu o canteiro central da avenida e esticou uma cadeira de nylon, abriu uma sombrinha para abrigar-se do sol do fim de tarde. Por um instante, ele esqueceu de que seus planos foram frustrados nessa tarde e observa atentamente a mulher com seu “kit praia” em plena avenida.

Consciente de que está sendo observada, ela oferece-lhe uma cadeira. Ele pensou em recusar, mas enquanto decidia se aceitaria ou não, esticou os braços e trouxe para junto de si a cadeira oferecida. Sentados no canteiro, a cena lhe parecia, no mínimo, hilária, mas preferiu não questionar nada.

-Aceita refrigerante? – ofereceu a desconhecida enquanto caminhava até o porta-malas de seu carro.

-Sim.

-Tá geladinho – entregou ao convidado uma lata de refrigerante.

-Obrigado. Pelo que vejo você está acostumada a lidar com imprevistos.

-É.

-Está longe de casa? – Jurandismariano perguntou, criando uma situação para manter a conversa com a ilustre desconhecida e anfitriã não convencional.

-Um pouco. E você?

-Pra dizer a verdade não estou muito distante, mas como a única opção de saída é seguir por terra, esses carros empilhados avenida abaixo criam um abismo.

Ela riu e continuou o momento de apresentação:

-Tem alguém esperando por você?

-Meu filho - ele lembrou-se do celular que ficara no barzinho – mas algo é certo: não chegarei antes de ele ir dormir. E você?

-Eu tenho, mas como não chegarei pouco me importa.

-Certo. Casada?

-Sim.

-Filhos?

-Já criados.

-Que bom.

-Quer mais refrigerante?

-Não, obrigado.

-Está um pouco suado. Parece não estar muito acostumado ao ar livre.

-Realmente. Vivo no ar-condicionado, basta observar minha pele e verá que está meio esverdeada.

-Você não vive com o filho e nem tem cachorro.

-Como sabe?

-Se tivesse, teria que levá-los para passear e teria mais contato com os efeitos do sol.

Ele sorriu largamente, pois por um instante sua mente buscou uma lembrança de quando era criança.

-É verdade.

-Gosta de batatas fritas?

-Sim... mas... – ele deu uma olhada em volta e só viu carros parados, pessoas estressadas. Retornou, então, o olhar para aquela mulher de pouco mais de quarenta anos. Viu sua expressão um tanto desafiadora. Ela se dirigiu novamente ao próprio carro e trouxe um pequeno botijão, contendo uma única chama agregada a qual poderia ser acionada.

Jurandismariano sente acender sua meninice no momento em que sua mais nova conhecida jogou-lhe uma batata inglesa com casca e tudo. Diante da situação imprevisível, seus reflexos não foram eficientes a ponto de segurar a primeira batata, todavia conseguiu abarcar as demais que foram jogadas em sincronia. O que fazer com as leguminosas? Antes que ele verbalizasse a pergunta, ela indicou-lhe com um gesto onde havia uma faca de mesa com cabo verde limão.

A situação, de tão inusitada, fez com que ele sorrisse e cumprisse com precisão a ordenança. Jurandismariano cascou as quatro batatas médias e voltou-se para ela.

-Deixa que eu corto – ordenou depois que já havia colocado óleo de soja dentro de uma panela teflon que estava obre a única chama e sob a pouca sombra de um pé de Jamelão pertencente à ornamentação urbana.

-Já fritou batatas antes? – perguntou provocativo.

-Não num canteiro urbano.

-É muito prática.

-Faz parte.

-Seu marido sabe que se atrasará, pois está fritando batatas no centro da cidade acompanhada de um moço que acaba de conhecer?

-Ele está no Sul do país.

-Seus filhos?

-Estão ocupados. Pedro está no ensaio da banda, George está na faculdade. Não notarão meu atraso.

-Pelo jeito não tem problema com colesterol.

-Que nada, é fome mesmo.

-Não seria melhor atravessar a avenida e encontrar um bar com coxinhas fritas, bauru feito há doze horas mais ou menos – ironizou, sorrindo.

-A batata está mais fresca – ela correspondeu o bom humor.

Ele sorriu, enquanto olhou para o céu, pois notou que o sol diminuiu a emissão de raios. Estava feliz. Não sabia por que, mas sentia-se muito bem. Interessante, pois há alguns minutos estava completamente irritado e aquela quebra de rotina mudou-lhe o estado.

O pequeno fogareiro trabalhava incessantemente a fim de dourar as batatas cortadas em pequenas fatias.

-Estão quase prontas – ela anunciou.

-Estão ótimas – falou olhando o borbulhar da gordura dentro da panela.

-Pegue ali – apontou para o porta-malas do carro – pegue a mesa para montar. Traga dois pratos.

Ele obedeceu.

O cheiro das batatas recendia. Como os carros permaneciam imóveis, Jurandismariano sabia que seu programa não seria interrompido. Depois da mesa já posta, ele perguntou:

-Toma cerveja?

-Não quando estou em trânsito. E você?

-Não bebo.

-Come – apontou generosamente para o petisco, enquanto entregava-lhe uma pequena saleira.

Houve alguns instantes de saborear. Ninguém falava nada. As pessoas passavam por eles e qualquer um apostaria que aquela harmonia era resultado de anos de amizade.

- Que delícia! – foi a frase que lhe escapulira.

-Que bom que gostou.

-Perdão, mas acho que me esqueci de algo importante: qual é seu nome?

-Teresa. E o seu?

- Jurandismariano.

-Como?

- Jurandismariano – ele estava acostumado a repetir seu nome, pois sempre causara estranhamento em quem o ouvia pela primeira vez – meu pai se chamava Jurandir e minha mãe, Mariana. Deu nisso – ele sorriu.

Teresa também sorriu, mas continuava comendo batatas. De repente ela parou o olhar e comentou:

-Nunca soube o porquê do meu nome, mas gosto dele. Quer mais batatas?

-Sim – olhou para a avenida – isso demora?

-Não sei... – falou com tranquilidade.

-O cidadão ao lado está muito nervoso – fez um gesto com a cabeça indicando a direção que estava atrás dela.

-Deve ser calor, fome, estresse...

-Você mantém sempre essa calma?

-Não.

-Engraçado.

-Por quê?

-Não dá para imaginar você esbravejando...

-A gente vive aprendendo a controlar os impulsos.

-Estava vindo de onde mesmo?

-Saí do trabalho e passei no supermercado.

-Hum... está explicado, mas deixa para lá.

-O que foi?

-Fico só imaginando você numa situação de alagamento...

-Em janeiro do ano passado – interrompeu para oferecer mais batata.

-Obrigado. Estou satisfeito.

-Quer sorvete?

-Sorvete?

-Não se preocupe, está pronto.

Ele deixou escapar mais um risinho, enquanto a viu aparecer de volta do carro com um pote de sorvete.

-Sorvete de ameixa.

-Adivinhou, é meu preferido!

Depois de servir o homem ela continuou:

-Como estava dizendo, em janeiro do ano passado...

Eles foram interrompidos por uma movimentação dos motoristas retornando para seus respectivos veículos, ou mesmo pela sincronia de ligar os motores. A pista havia sido desobstruída e em poucos minutos o trânsito ali começaria a fluir até ganhar seu ritmo normal.

Jurandismariano ajudou a Teresa desmontar e organizar no carro todo o aparato de piquenique improvisado. Depois de encaixar tudo de volta no carro dela, ele se deu conta de que nem pegara um telefone para contato. Ela agradeceu-lhe com um sorriso do qual ele não havia percebido a alvura e harmonia. Ele também agradeceu e quando ia perguntar algo, ela que já estava com o carro ligado, saiu, contornando o carro dele, já que este estava na frente, seguindo o fluxo de carros que contornavam o seu veículo ainda parado na pista esquerda.

Ele saiu meio apressado e desnorteado, pois já era noite. Iria à casa de Mário ou voltaria ao barzinho para pegar seu blazer? Mas o ele queria mesmo era saber o que acontecera no janeiro passado.

Rosimeire Soares
Enviado por Rosimeire Soares em 14/01/2012
Reeditado em 07/06/2012
Código do texto: T3440064