O Resenhador sem Ofício
O Resenhador sem Ofício
- Gostaríamos de contratá-lo para escrever uma resenha, exatamente do jeito que você escreveu a...onde está mesmo? Agora não acho, espere um segundo.
Fiquei esperando. Ele voltou e disse:
- Não estou encontrando... Olhe, tenho coisas mais importantes para fazer do que me ocupar com isso. Você topa?
- Vocês pagam? – indaguei, imaginando um xis salada recheado com fatias de peru de natal e regado com molho de pernil de natal.
- Regiamente – assegurou-me ele – seus problemas financeiros terminaram. Mas tem de ser igual a tal resenha, que eu nem sei qual é, francamente estou ocupadíssimo, represento um grupo de investidores, só por isso estou tratando dessa marmelada e ainda por cima tenho de falar com um tipo que nem você... Resenhas...bleargh, enfim, assine aqui.
Assinei sem pestanejar. Então pensei alto:
- Agora não precisarei mais levar esperança para as Marias...
O homem arrancou o papel das minhas mãos e olhou-me perscrutador. Volvi ser um assunto particular e ele volveu que quando se paga regiamente as particularidades se tornam tênues. Achei um raciocínio a ser considerado e desfiei a cantilena.
- Todos os sábados visito duas senhoras e digo-lhes que vou ganhar na loteria e tirá-las de lá. Elas exultam, uma diz que até sonhou com isso. Durante duas horas fazemos planos, elas querem um cantinho, um carrinho e um motorista para levá-las passear. Uma fala em museus, a outra quer ir ao pagode. Fizemos até um cronograma...
- Já entendi – retrucou o homem, ajeitando os papéis numa pasta de couro de crocodilo. Quando ele estava se preparando para sair, não sei por que, uma inspiração, decerto, me levou a articular:
- Hã, já que o senhor representa um grupo de investidores, talvez seja oportuno dizer, desenvolvi um software capaz de transformar qualquer texto na obra de um grande mestre.
Ele parou, digamos, num semi transe, e seu pensar ligeiro foi conjugando pares e ímpares, à medida que sibilava coisas como “internet”, “publicações”, “publicidade”...
- Como é isso?
- Simples – expliquei – o autor ou autora redige qualquer coisa, por exemplo, “a ratoeira se almecegou na coxia de fios de ovos” e no mesmo instante isso se transforma em Dostoievski. Puro. Puro Dostoievski. E mais, no software há um menu interativo, para o caso do cliente não gostar de Dostoievski, com inúmeros outros mestres. Camões, Shakespeare, Rimbaud...
Os olhos dele brilharam. Chamou-me de senhor.
- Ora, se isto for mesmo verdade cancelamos o negócio das resenhas e compramos o software. Com certeza pagaremos muito mais.
- Ótimo – emendei – estou nessa existência apenas para ganhar dinheiro.
- Mesmo? – ele arqueou as sobrancelhas – e por acaso você teria um software que trate exclusivamente disso? Porque, veja bem, não vamos precipitar as coisas, mas se assim for, esquecemos o negócio das resenhas e dos grandes mestres e nos concentramos apenas nesse produto, não concorda?
- Lógico – respondi, pensando no pudim de natal.
- Então, para quando o senhor pode me entregar esse outro software? – indagou o homem, que pela segunda vez me chamara de senhor.
- Tão logo eu consiga dissociar certa equação proposta por Napoleão do perfil comportamental/financeiro do político brasileiro.
- Napoleão Bonaparte?
- O próprio. Veja, quando perguntado sobre a falta de grandes estadistas no mundo, Napoleão respondeu o seguinte: “para conseguir poder é necessário mostrar completa insignificância. Para exercer o poder é preciso mostrar verdadeira magnificência. Insignificância e magnificência são raras na mesma pessoa”.
O homem coçou a cabeça em sinal de nervosismo, depois me acusou de fugir completamente do assunto e, por fim, beirando o exaspero, sublinhou que quanto aos políticos brasileiros, ora, não são estadistas.
- Aí é que está – disse eu, dando por encerrado o assunto e já emendando uma nova conversa – os srs. se interessariam por uma resenha sobre o que eu vi hoje de manhã, no centro de São Paulo? Eles retiravam os moradores de rua sob o viaduto com jato de água e ameaça de algo pior. Isso não me parece assistência social. Quando vi a cena, lembrei da suástica.
Ele fechou os olhos, dando a impressão de ruminar sobre o tema, e depois disse:
- Em geral, grupos de investidores não investem na realidade.
Calamo-nos por alguns segundos, ou antes, dividimos um redundante silêncio.
- Acho que houve uma certa precipitação – bufou ele, remexendo na pasta, extraindo dali o nosso contrato e rasgando-o na minha frente – vamos combinar um valor pela resenha de, ah, achei, aqui está - “Querida, encolhi as crianças”. Quanto o senhor vai cobrar?
- Um xis salada. Talvez dois. Posso pensar?
(Imagem: Monica Fernadez)
O Resenhador sem Ofício
- Gostaríamos de contratá-lo para escrever uma resenha, exatamente do jeito que você escreveu a...onde está mesmo? Agora não acho, espere um segundo.
Fiquei esperando. Ele voltou e disse:
- Não estou encontrando... Olhe, tenho coisas mais importantes para fazer do que me ocupar com isso. Você topa?
- Vocês pagam? – indaguei, imaginando um xis salada recheado com fatias de peru de natal e regado com molho de pernil de natal.
- Regiamente – assegurou-me ele – seus problemas financeiros terminaram. Mas tem de ser igual a tal resenha, que eu nem sei qual é, francamente estou ocupadíssimo, represento um grupo de investidores, só por isso estou tratando dessa marmelada e ainda por cima tenho de falar com um tipo que nem você... Resenhas...bleargh, enfim, assine aqui.
Assinei sem pestanejar. Então pensei alto:
- Agora não precisarei mais levar esperança para as Marias...
O homem arrancou o papel das minhas mãos e olhou-me perscrutador. Volvi ser um assunto particular e ele volveu que quando se paga regiamente as particularidades se tornam tênues. Achei um raciocínio a ser considerado e desfiei a cantilena.
- Todos os sábados visito duas senhoras e digo-lhes que vou ganhar na loteria e tirá-las de lá. Elas exultam, uma diz que até sonhou com isso. Durante duas horas fazemos planos, elas querem um cantinho, um carrinho e um motorista para levá-las passear. Uma fala em museus, a outra quer ir ao pagode. Fizemos até um cronograma...
- Já entendi – retrucou o homem, ajeitando os papéis numa pasta de couro de crocodilo. Quando ele estava se preparando para sair, não sei por que, uma inspiração, decerto, me levou a articular:
- Hã, já que o senhor representa um grupo de investidores, talvez seja oportuno dizer, desenvolvi um software capaz de transformar qualquer texto na obra de um grande mestre.
Ele parou, digamos, num semi transe, e seu pensar ligeiro foi conjugando pares e ímpares, à medida que sibilava coisas como “internet”, “publicações”, “publicidade”...
- Como é isso?
- Simples – expliquei – o autor ou autora redige qualquer coisa, por exemplo, “a ratoeira se almecegou na coxia de fios de ovos” e no mesmo instante isso se transforma em Dostoievski. Puro. Puro Dostoievski. E mais, no software há um menu interativo, para o caso do cliente não gostar de Dostoievski, com inúmeros outros mestres. Camões, Shakespeare, Rimbaud...
Os olhos dele brilharam. Chamou-me de senhor.
- Ora, se isto for mesmo verdade cancelamos o negócio das resenhas e compramos o software. Com certeza pagaremos muito mais.
- Ótimo – emendei – estou nessa existência apenas para ganhar dinheiro.
- Mesmo? – ele arqueou as sobrancelhas – e por acaso você teria um software que trate exclusivamente disso? Porque, veja bem, não vamos precipitar as coisas, mas se assim for, esquecemos o negócio das resenhas e dos grandes mestres e nos concentramos apenas nesse produto, não concorda?
- Lógico – respondi, pensando no pudim de natal.
- Então, para quando o senhor pode me entregar esse outro software? – indagou o homem, que pela segunda vez me chamara de senhor.
- Tão logo eu consiga dissociar certa equação proposta por Napoleão do perfil comportamental/financeiro do político brasileiro.
- Napoleão Bonaparte?
- O próprio. Veja, quando perguntado sobre a falta de grandes estadistas no mundo, Napoleão respondeu o seguinte: “para conseguir poder é necessário mostrar completa insignificância. Para exercer o poder é preciso mostrar verdadeira magnificência. Insignificância e magnificência são raras na mesma pessoa”.
O homem coçou a cabeça em sinal de nervosismo, depois me acusou de fugir completamente do assunto e, por fim, beirando o exaspero, sublinhou que quanto aos políticos brasileiros, ora, não são estadistas.
- Aí é que está – disse eu, dando por encerrado o assunto e já emendando uma nova conversa – os srs. se interessariam por uma resenha sobre o que eu vi hoje de manhã, no centro de São Paulo? Eles retiravam os moradores de rua sob o viaduto com jato de água e ameaça de algo pior. Isso não me parece assistência social. Quando vi a cena, lembrei da suástica.
Ele fechou os olhos, dando a impressão de ruminar sobre o tema, e depois disse:
- Em geral, grupos de investidores não investem na realidade.
Calamo-nos por alguns segundos, ou antes, dividimos um redundante silêncio.
- Acho que houve uma certa precipitação – bufou ele, remexendo na pasta, extraindo dali o nosso contrato e rasgando-o na minha frente – vamos combinar um valor pela resenha de, ah, achei, aqui está - “Querida, encolhi as crianças”. Quanto o senhor vai cobrar?
- Um xis salada. Talvez dois. Posso pensar?
(Imagem: Monica Fernadez)