_O caso Lazarelli
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As crônicas, não fossem as vivências de seus criadores, talvez estivessem mortas! Entretanto, sobreviveriam sem as inter-relações humanas trocadas no dia-a-dia das nossas sofridas e, por vezes, felizes vidas? O que seriam das crônicas sem o tempero da vida real, sem as confissões gratuitas e pagãs, livres das celibatárias vestes e rituais dos confessionários? Se desprovidas de valor espiritual, pelo menos seduzem os espíritos afeitos ao ato do sorriso farto, sem comedimento.
Os fatos do causo de hoje serão narrados por Nattan. Houve a liberdade do exagero hiperbólico que a literatura permite, preservando-se a identidade do protagonista, o ilustre Capitão Lazarelli.
A agonia se perpetua...
“Desabafante”: Capitão Lazarelli. “Desabafador”: Major Riajin. Conciliador: o tempo. Julgador: você.
Já faz alguns meses que essa saga se iniciou, mas... No expediente, pela manhã, cedinho, o capitão se aproxima do superior hierárquico e diz:
– Major, o bicho tá pegando lá em casa!
– Que aconteceu, rapaz?
– A mulher me flagrou namorando na internet e foi mãozada pra todo lado! Tentei argumentar, mas não teve jeito. Eita mulher braba da peste, coligado!
O major tenta manter a compostura. O capitão prossegue:
– O pior, Major, foi quando à noite, na frente das crianças, ela chegou, com um trecho do meu bate-papo com a coligada na mão, impresso, e disse:
– “Olhe o bicho véio, sabe nem cantar!” – e continuou: “Meu bebezinho, eu gosto de tu “mais” é muito! Isso lá é coisa que se fale pra cantar mulher!
Foi ouvir a narrativa e cair na gargalhada.
– Poxa, Major! A gente vem desabafar e o senhor tira é onda!
O superior tenta contornar a gafe:
– Depois desses contratempos conjugais o encanto e a confiança certamente ficarão comprometidos, mas tem como reverter a situação. Tenha paciência. Foram palavras escritas, nada mais; nada de muito formal.
– Eu sou frouxo, major! Se ela me apertar eu conto tudo – interrompe o capitão.
– Que erro primário, combatente! Os manuais são taxativos em casos como esse. Está lá, em relevo, na página 37 do Manual: réu confesso, jamais! Pelo menos até agora é tudo especulação. Tenha paciência.
– Valeu, chefe. Vou pra casa então. Posso sair mais cedo hoje? Minha cabeça está zunindo.
– Sem problema, vá e descanse. Tente esfriar a cabeça e os ânimos.
Mais ou menos em novembro do ano passado, Lazarelli pediu novo particular e desabafou, sem preliminares:
– Major, fiz besteira de novo!
– Que foi dessa vez, rapaz?!
– A mulher está pegando demais no pé, Major, e ontem eu assumi o caso!
– Você é louco, camarada! Réu confesso? Assim complica...
O major tenta repreendê-lo. É interrompido:
– Deu não, Major! Abri o jogo. De tanto ela me perturbar, assumi e disse que eu e a dita cuja, “a gente está se gostando”. A mulher é tão dum jeito que só foi eu assumir, sabe o que ela disse?
– Fale!
– “A gente está se gostando, é! Passe pra dentro de casa, seu véio safado, seu abestalhado! Trate logo é de cuidar dos seus filhos! Com um bucho desses e se danando! Pensa que ainda é brotinho? Não tem dado assistência nem em casa...”.
– Dá pra entender mulher, Major? Elas brigam, brigam. Ficam enchendo... E quando a gente assume a puladinha de cerca não aceitam! Falamos a verdade e esvaziam o bico, murcham todinhas! Quando a gente mente elas pegam ar!
– Pelo menos você está em paz com sua consciência...
Passaram-se os dias e dezembro chegou. Natal, época de festividades, de reverências ao Cristo vivo...
No quartel, dois dias depois do Natal, lá vem o Lazarelli com carinha de quem fez bobagem. Pra variar, o homem da estrela gemada, das amarelinhas[1], serviria de confidente para novos relatos de desabafo do capitão do quadro administrativo. Com a aproximação, Riajin se antecipou:
– O que foi dessa vez, Lazarelli?
– Tem jeito mais não, Major! A mulher me colocou pra fora de casa.
– Logo no Natal!
– Foi sim! Dei uma tevê de 32 polegadas pra ela, todo feliz! Pensei que fosse gostar, mas sabe o que ela fez? Perguntou: “E pra outra, você deu um televisor também?” Ah, major, saí do sério e disse que pra outra tinha dado uma tevê menorzinha, de 14 polegadas. Pense na mãozada que levei!
– Você e sua esposa são pavio curto demais!
– Cansei de levar porrada, Major! Tem alojamento vazio pra me hospedar? Vou me arranchar[2] hoje pro almoço, posso?
– Sem problema, claro que pode! Afinal, o quartel ainda é a casa dos desalojados.
– Fresque[3], não, Major! – respondeu Lazarelli, já se dirigindo ao rancho do quartel.
Os dias se passaram. Os ânimos se arrefeceram... Até Lazarelli, o genuíno militar, desabafar, no corpo-da-guarda[4], durante a preleção com a tropa de serviço:
– Eita negócio complicado é casamento!
Os curiosos, sem perderem tempo:
– Algum problema, capitão?
– Ontem, ao chegar a casa depois do expediente, fui chamado pela mulher. A Dona Encrenca ligou o computador e me mostrou a comunidade criada por ela num site de relacionamento. Adivinhem qual o nome da comunidade que a mulher criou e fez questão de me mostrar, exigindo que eu enviasse o link pra coligada lá?
– Diga, capitão. – foi a resposta dos presentes.
– “Pensa que é bonito ser escovão[5]?”
Isso lá é nome de comunidade? – comenta o oficial sem se dar conta da satisfação estampada no rosto dos subalternos.
A comunidade está sendo divulgada mundo afora...
No quartel, garante Nattan, todos foram devidamente informados. E a orientação dada foi: divulguem entre os amigos!
Juazeiro do Norte-CE, 22 de fevereiro de 2011.
08h56min
[1] Na vida militar, no ciclo dos oficiais, há três níveis: oficiais subalternos (tenentes), oficiais intermediários (capitães) e oficiais superiores (majores, tenentes-coronéis e coronéis). Os oficiais superiores possuem, nessa ordem, uma, duas e três estrelas amarelas chamadas informalmente de estrelas gemadas. Nas forças armadas há, ainda, os almirantes (Marinha), generais (Exército) e brigadeiros (Aeronáutica).
[2] Arranchar. Dividir ou reunir em ranchos. Dar rancho a. Convidar para tomar parte numa refeição. Formar rancho; reunir-se para determinado fim. Hospedar-se.
[3] Frescar: regionalismo que significa brincar, caçoar.
[4] Entrada dos quartéis.
[5] Forma peculiar e carinhosa de como os militares tratam algumas mulheres.