Deus quis assim
Eram quatro irmãs jovens e lindas. Iam dos dezesseis aos vinte e três anos, mas não aparentavam. A caçula passaria por uma criança de treze. Não tinham antes chamado, de forma especial, minha atenção. Eu as via sempre juntas nas missas dominicais. Era de onde me conheciam. Agora, entram na sala de atendimento as quatro de uma vez. À minha frente, quatro rostos de imensa beleza e profundamente tristes.
Sua história me encheu de dor. Também de revolta com gente que fala o que não sabe. Eram de outra cidade, distante mais de cem quilômetros. O pai aqui as colocara para estudarem. A mãe se dividia entre marido e filhas; mais tempo para elas do que para ele. Proprietário rural trabalhador, ele dava duro, de segunda a sexta, no sítio, mas o final de semana era da família. Chegava, às vezes, quando ainda dormiam. Apaixonado pelas meninas, junto delas virava um moleque. Acordava-as atirando pedrinhas na janela do apartamento. Elas despertavam aos saltos e se atiravam, todas juntas, no seu pescoço. Sufocavam-no com excessos de carinho que raros pais tiveram a felicidade de experimentar. O sábado e domingo eram, para a família, uma festa de quarenta e oito horas.
Esse idílio de amor inocente um caminhão canavieiro destruiu de forma brutal. No caminho da propriedade, atropelou e matou o pai das garotas. Mãe e filhas sentiram o chão fugir-lhes sob os pés.
Então, apareceu o estranho conforto que alguns oferecem nessa hora: “Consolem-se. Deus quis assim. Vocês precisam aceitar a vontade de Deus”. A educação cristã sugada com o leite materno perigou de sofrer um abalo. Fitavam-me angustiadas, inquirindo mais com o coração do que com os lábios: “Deus quis mesmo o acidente que matou nosso pai? Foi vontade dele?”
Quando a aflição é por demais intensa, prende-se a voz no peito. Fitei-as, uma a uma, mergulhando no oceano de dor e saudade daquelas lágrimas quentes. Lutei para segurar as minhas. Elas buscavam apoio em quem imaginavam forte. Mas forte como, num caso assim?
Espero ter-lhes devolvido a certeza de que Deus é o pai de cujo amor e doçura, elas tiveram em casa, desde que nasceram, a mais deliciosa amostra. Melhor do que ninguém elas têm autoridade para falar que Deus não quis aquela tragédia. Que pai ia fazer aquilo?
Ocorre que um misterioso elo de solidariedade nos liga tanto para a alegria quanto para a dor. Somos pessoas vivendo ao lado de pessoas. Queiramos ou não, nossos caminhos se cruzam. Nesse cruzamento, existe a dolorosa possibilidade de produzirmos luto em vez de festa. Fomos dotados de inteligência, de criatividade, de vocação para o bem, para a verdade, unidade, beleza... Também dispomos, para nossa grandeza ou vilania, do livre arbítrio. Deus não manda em nós. Não toma nossas decisões. Não violenta nosso querer. Nosso agir é decidido por nós. Se há erros, nós os cometemos.
Não há liberdade para o mal, para agravo à consciência, que é instância próxima da vontade de Deus. Mesmo que muitos, por desfaçatez e descaso do bem, se atribuam o direito de praticar atos condenáveis.
Inseparável da liberdade, a responsabilidade é sua irmã gêmea. Sem ela, a liberdade se converte em anarquia. Quando ocorre, é desgraça a caminho e sofrimento na certa.