Do tamanho
            do braço




     Estive no centro da cidade. 
     Combinara com uma amiga para comer uma moqueca de camarão, com bem dendê e muito leite de coco, num restaurante qualquer do Pelourinho.
     Cheguei ao local por nós acordado e a encontrei com os olhos no seu reluzente cartier; e com absoluta razão: ultrapassara, em muito, o horário previamente acertado.
     Expliquei-lhe o motivo do atraso, dizendo-lhe que escolhera o caminho da praia para chegar ao Centro Histórico, e, em consequência, tivera que atravessar, praticamente na segunda marcha, o circuito praiano do carnaval baiano.
     E ressaltei: falta mais de um mês para a chegada do rei da folia e operários já trabalham, dia e noite, na instalação dos camorotes gigantes que acolherão os foliões famosos e apatacados.
     Obtive o seu perdão pelo atraso comprovadamente involuntário.

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     Para quem não conhece, esse circuito carnavalesco começa no farol da Barra e termina no bairro de Ondina, atrapalhando tudo e a todos.
Ficou conhecido como o circuito Barra-Ondina.
     Pois é. De repente ele tira dos nossos olhos um pedaço da orla de Salvador, por todos os títulos, encantador.
     Desse cenário faz parte, por exemplo, o belíssimo Farol da Barra, cartão-postal desta linda cidade. Protege-o a Marinha brasileira. Felizmente.
     Sem a proteção da Marinha, apesar da sua imponência, valor histórico e importância náutica, ele seria transformado, durante o carnaval, num mictório público, pois os foliões não estão nem aí!
     
               ***   ***   ***

     Sem proteção ficam os moradores da Barra, um dos bairros mais queridos e tradicionais da capital baiana. 
     Durante os cinco dias de festa, seus moradores viram reféns de foliões irreverentes; e ainda são obrigados a ouvir músicas tribais e a tolerar artistas a caminho do ocaso.
     "Em cada esquina, uma desfeita; uma bagunça" me dizia, dia desses, um respeitável senhor, residente no bairro há mais de meio século.
     Tudo isso me leva a concluir que Salvador precisa de um sambódromo, para que a cidade, nos cinco dias de fuzarca momesca, volte a ter sossego e paz.
     Embora saiba que nele não serão ouvidos sambas, nem por ele desfilarão sambistas. 
     Será o palco de pagodeiros chulos que têm, nos seus inconvenientes e desrespeitosos requebros, sua principal atração.

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     Falemos, agora, de coisa séria.
     Falemos da festa do Senhor do Bonfim que acontecerá neste segundo domingo de janeiro. É sem dúvida um espetáculo de fé e crença.
     Milhares de baianos - uns saídos das sacristias das igrejas e outros dos terreiros de Candomblé - subirão, de mãos dadas, a Colina Sagrada. 
     Com cânticos e vivas, saudarão o padroeiro da Bahia, Senhor do Bonfim, no Candomblé, Oxalá. E ninguém deixa o adro da majestosa basílica sem uma fitinha enrolando seu pulso, como suvenir ou amuleto.
     
               ***   ***   ***


     Cheguei a Salvador nos primeiros dias de janeiro de 1957.  Portanto, em plena festa do Bonfim.
     Ainda no aeroporto, uma baiana, negra de olhos verdes, vestida a caráter, ofereceu-me uma fitinha azul claro.
     E sorrindo, me disse no pé do ouvido: "Iôiô, amarre-a no seu pulso; dê três nos, fazendo antes de cada nó, um pedido."
     Para completar, aconselhou-me a manter os pedidos em segredo, até que a fitinha, com o tempo, se partisse.
     Sabia pouco sobre a medida do Bonfim. 
     Embora visivelmente desconfiado, prometi seguir à risca o conselho da baiana, que se chamava Matilde. 
     De fitinha no pulso, passei a investigar sua origem e o que ela significava. 
     Apurei que as fitinhas apareceram em 1809; que a cor de cada corresponde a um Orixá; e que elas têm exatamente 47 centímentros, o tamanho do braço da imagem do Senhor do Bonfim, que abençoa a Bahia há séculos.
     A fitinha azul claro que recebera no aeroporto correspondia a um Orixá. 
     Vim a saber depois, que o Orixá era Iemanjá.

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     O tempo passou. 
     A fitinha perdeu a cor, e, num banho de mar, ela desapareceu nas águas da praia de Amaralina, que frequentei alguns anos.
     Fizera os três pedidos. Mas, até hoje, não fui atendido em nenhum deles. 
     E faz mais de cinquent´anos que Matilde me deu, no aeroporto, a medida do Bonfim.
     Resta provado, que não tenho prestígio nem com Iemanjá, nem com Oxalá, e muito menos com Senhor do Bonfim. 
     Em tempo: os pedidos que fiz, e que ainda os guardo comigo, até que não eram tão difíceis de serem atendidos. Fazer o quê?  

      

     



     
     
     
Felipe Jucá
Enviado por Felipe Jucá em 11/01/2012
Reeditado em 05/11/2020
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