Cristal

Cristal

“Cão velho, quando ladra, dá conselhos”.

Autor desconhecido

(*) Texto de Aparecido Raimundo de Souza.

Ela é preta, bem pretinha, tem os olhinhos tristes, aflitos, melancólicos e quando a gente chama, a espevitada vem se achegando cabisbaixa, abatida, deprimida, em postura de comiseração, de humildade, de reverencia, como se temesse um passa fora ou uma reprovação repentina. A propósito disso, tem um axioma que ensina que “o olhar de um cão é o melhor espelho onde se pode ver a grandeza de sua alma”. E é a mais pura verdade.

Baseado nessa frase, eu diria que a pequena cadelinha preta parece gente, age como tal, pensa como tal, contudo, é apenas uma cachorra. Porém, apesar de bicho domesticado, criado num pequeno e diminuto circulo, que não lhe dá muitas alternativas, todos na casa a tratam e bajulam como se fosse um membro da prole. Tinha razão, pois, Marilyn Monroe, que gritava aos quatro cantos do mundo, que “os cães não lhe mordiam, somente os seres humanos lhe arreganhavam os dentes”.

Venho notando, há dias, que a simpática cadelinha preta aqui descrita, deu para se locomover de maneira torta, igual uma minhoca mal nutrida, como se tivesse recebido umas cutucadas de través, no obliquo de cada passada, assim como, de roldão, umas chineladas, ou pior que isso, tomado pelos costados, às escondidas, meia dúzia de bons chutes dados por alguém com aversão a animais criados no seio familiar. Por conta dessas supostas malvadezas, a pobrezinha capenga. Pende ora para um lado, ora para outro, como se coxeasse.

Às vezes, mostrando certa dificuldade, consegue manter o corpo ereto, e chegar a seu destino, noutras, desaba com o peso do próprio traseiro. Disse a Mary que talvez ela esteja com a carroceria corrida. Trocado em miúdos, sofrendo de alguma dor estranha; oculta; não vista a olhos nus. Um mal que a incomoda de modo cada vez mais crescente e irreversível.

Atrelado a isso, leve-se em conta que a bichinha não sabe falar, apenas se comunica através de latidos... Sofre, assim, em silencio, como só alguns animaizinhos abençoados conseguem, e, nessa vida pacata e tacanha de au, au, au, indefeso, vai tocando a vida, sem deixar perceber que a mazela interior começa a incomodar mais do que deveria. Em contrapartida, esse estorvo, quer queira, quer não, acaba deixando marcas indeléveis do tempo passado, sinal, aliás, da fadiga do peso vivido.

Em parelha como os seus donos, esses pequenos animais, neste particular, não são diferentes. Tanto para nós, como para eles, a idade pesa no lombo, verga os passos, prosta o seguir em frente. Extenua lado outro, qualquer tipo de esperança. Daí o jargão popular sinalizar que “vida de cachorro é, acima de tudo, vida de cão”. E ser cão, ainda que a efemeridade da mais pura e cristalina bajulação seja ela de que tipo for não alimenta totalmente o ego canino, ao contrario, sufoca e oprime.

Na verdade, mata aos goles poucos, numa definhação que embriaga, debilita e enfraquece, e mais que qualquer tipo de doença conhecida, desafia a veterinária dos nossos dias atuais, apesar de toda a tecnologia de ponta. Dave Barri era enfático ao sustentar que “... Você pode dizer qualquer coisa idiota a um cão, que ele vai olhar para ti e dizer: “Meu Deus, você está certo! Eu nunca teria pensado nisso”.

Nesse condão, Erika, Luiz e Suelem, consolidam a hipótese de que todo aquele quadro vivido pela pobre cadelinha preta é decorrência do mal que atinge a todos os seres vivos em idade avançada. A velhice! Por certo, a velhice mata. Mais que isso, fere, produz fendas enormes prejudica o dia a dia, contraria sonhos (os cachorros também sonham, sabiam?)

Milan Kundera levantou a bandeira de que os cães “são nosso elo com o paraíso. Eles não conhecem a maldade, a inveja ou o descontentamento. Em razão disso, sentar com um cão ao pé de uma colina numa linda tarde é como voltar ao Éden onde ficar sem fazer nada não era tédio, era paz”.

De certa forma, até aposto nessa idéia do animalzinho estar gasto pela desolação do tempo, obsoleto em vista da idade, levando, em conta, ainda, que na maioria das vezes, a Cristal (esse é o nome da simpática cadelinha preta), para andar alguns metros, precisa se equilibrar em imaginários paus de arrimo. Martinho Lutero, certa vez, asseverou publicamente que “existem três cachorros perigosos: a ingratidão, a soberba e a inveja. Quando mordem deixam uma ferida profunda”.

Por derradeiro, os que não gostam desses pequenos seres brilhantes, deveriam assistir, “Sempre a seu lado”, longa que conta a historia de Hachi, um filhote da raça akita, encontrado por acaso, numa estação de trem, por Parker, vivido por (Richard Gere). Com certeza, essas pessoas abririam as portas do coração e deixariam, no lugar da pedra bruta, uma flor desabrochar e, com a vivência da amizade sincera, a realeza do AMOR infinito se ETERNIZAR.

(*) Aparecido Raimundo de Souza, 58 anos é jornalista.

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Aparecidoescritor
Enviado por Aparecidoescritor em 11/01/2012
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