A Fila do Orelhão
Nada, nem os primeiros fios brancos, nem a ação irrefutável da gravidade, nem o irritante menino do ônibus me chamando de "tia", nem mesmo o olhar da péssima vendedora da loja de calçados afirmando que não vendiam tênis bamba (e ela nem foi dar uma olhada no estoque!) - nada, nada mesmo, foi mais contundente no fato de estar envelhecendo do que aquela tarde de férias.
O ano estava terminando e eu não quis fugir do óbvio: fui dar uma faxina nas gavetas. Estava lá, com antigos sonhos espalhados ao meu redor, quando minha filha de treze anos perguntou:
- Ô mãe, que moeda é essa?
Sim, meus amigos, era isso mesmo: uma ficha de orelhão, que caiu da bolsinha de couro que eu usava como porta-moedas. Ficha de orelhão - suspirei diante do fato de nunca ter descoberto ao certo quantos minutos ela durava.
- Affes, mãe, e orelhão usava ficha?
Expliquei com paciente resignação como funcionava, sem poupa-la de detalhes sórdidos como as filas que se formavam sobretudo depois das oito da noite, quando as tarifas eram reduzidas, e os punhados de fichas que levávamos, dependendo de com quem e o que iriamos falar. Ela riu entre um "fala sério" e um "sinistro", e eu me lembrei de que ela era mais nova que o celular, outrora só acessível a Bond - James Bond.
Também me lembrei de mim mesma, nessa mesma idade, recém imigrada do meu Estado natal, enfrentando as filas do correio e do orelhão para "bater um fio" para meus primos e saber as fofocas da família.
Me vi naquela esquina em frente a uma padaria, os bolsos pesados de fichas que eu tinha o cuidado de colocar uma a uma - aprendi com a experiência dos outros. Pois não foram raras as vezes que presenciei cidadãos honrados prestes a depredar o patrimônio público ao descobrir que o orelhão "engoliu" as dez fichas que ele enfiou sem dó, mas não usou. Certa vez, um senhor perdeu a compostura. No começo, desanimamos ao vê-lo enfiar ficha após ficha, pelo menos uma dúzia, no orelhão. Todos ouvimos quando ele disse: 'Ela não chegou? Então eu ligo mais tarde.', e após desligar e esperar inutilmente alguns segundos, concluiu que o telefone não lhe devolveria as fichas não utilizadas. Por isso fomos compreensivos quando ele proferiu alguns nomes feios, esmurrando a cabine telefônica num desabafo inconformado. É verdade que ficamos satisfeitos com o fato da fila andar; o próximo agarrou o telefone e discou rapidamente - a fila inteira ouviu a voz da moça dizendo "Após o sinal diga seu nome e a cidade de onde está falando...", e ele (após o sinal): "Oi amor...". De repente parou de falar, e, virando-se pro lado, verificou que o cidadão das fichas permanecia ali plantado. Olhou feio. O outro impassível. Por fim não se conteve:
- Vai ficar aí ouvindo a conversa? - perguntou. Ainda se prezava a privacidade, mesmo que nessa situação fosse praticamente psicológica.
- E se o orelhão soltar minhas fichas? Daqui não vou sair. - cruzou os braços, decidido.
Suspiramos. Era tudo que faltava pra fila emperrar e a gente criar raiz ali. Discussões em fila de orelhão pressupunha um segurando o gancho do telefone, sem ligar nem arredar pé. E o outro ao lado. E ninguém enfiado naquela concha acústica calorenta, adiantando o lado da fila. No entanto, - fiz questão de salientar isso á minha filha - eram tempos bicudos, e o que seria de nós se não fôssemos solidários? O orelhão poderia ter engolido as fichas de qualquer um. Era quase tão genioso e imprevisível quanto um celular. Após falar ao telefone: "só um minuto amor", consciente e conformado, ele fechou a questão:
- Então, poderia pelo menos virar-se de costas?