cronica familiar
CRÔNICA FAMILIAR (crônica narrativa)
Era cedo, ainda não tinha levantado da cama quando escutei os gritos do meu filho dizendo que estava encharcado de urina, ouvi com nitidez os seus gritos, e nada mais confortante quando percebi que meu esposo tinha acordado, então fingi ainda estar dormindo, pois eu sabia que isso ele resolveria com êxito. Não consegui pegar no sono outra vez, a sirene da porta tocava insistentemente. Era minha irmã que acabara chegar de viagem e eu seria a primeira pessoa a recebê-la naquela linda manhã de setembro. Não me contive de surpresa e fui vê-la. Neste momento somente eu poderia fazê-lo, afinal, eu era a única parenta que ela tinha pouco contato. Meu esposo levantou-se e aproximou-se com um belo sorriso nos lábios querendo ser tão gentil que eu quase não o conheci. Não que ele fosse mal educado, pelo contrario, mas levantar-se numa hora daquela não era seu forte. Seu humor deveria ter se convertido de uma hora para outra.
Mais um dia havia passado e agora diante de uma pilha de louças sujas eu entreguei-me ao serviço sem ânimo, pois no canto da cozinha um enorme balde de roupas sujas esperava-me. Eu até já estava acostumada com aquela vidinha pacata e cansada, sem motivos de dar risadas. As tarefas e rotinas de um dia tiravam-me o sabor de viver, com mais de quarenta anos eu considerava-me simplesmente aprisionada pelas garras da vida, alguém que já tinha vivido sim, mas deixou-se ser levada pelo sabor de amargas lembranças e por isso esqueci-me até de sorrir pra mim mesma.
Por um breve momento calei-me, larguei de lado as louças que me inquietavam e levantei os olhos diante de um espelho... Há tanto tempo eu não via meu rosto, eu nem lembrava mais como eu era... Tive receio de olhar-me como eu deveria. Foi nesse momento que eu reconheci o quanto eu estivera presa numa historia de vida onde eu não era realmente feliz como eu pensei que fosse. Eu tinha uma família linda e muito a amava, mas percebi que eu havia esquecido de viver primeiro... Isso eu não o fiz. Onde estaria agora minha liberdade? Percebi timidamente em meu rosto as marcas do tempo... Procurava ver cada detalhe que o mesmo havia deixado em mim... Sim, havia rugas, marcas profundas que agora me afrontavam cobrando-me um sorriso. Fazia tanto tempo que eu não sorria, naquele momento seria uma atitude consciente, intensa, e eu não estava em condições de demonstrar com hipocrisia o que não falava meu interior. Vivi pouco para agora dizer aos meus netos que eu não soube viver... Eu não teria coragem.