MUDARAM AS ESTAÇÕES, MAS NADA MUDOU...

Nunca fui feliz!

A debilidade física, espírita e amorosa me lançou ao subfundo do poço. Os constantes vexames campais me aturdiram e caricaturaram um rosto caveiroso.

Minha tia Luzia, membro ilustre da Academia Idealista de Letras, sempre dizia nos que "Estar triste não depende de nós, mas estar feliz sim".

Tentava assimilar essas sábias sílabas.

Os xingos e as vaias macaqueadas pelos torcedores do Ruindver FC flecharam minha motivação. O desespero diante das intempéries avinagrava meu humor, até meu cãozinho Priguissa, vítima da minha rispidez, ficou depressivo e não reunia ânimo nem pra ronronar.

Ô dó!

Eu queria desistir da vida.

Foi numa macabra madrugada que encorajei o ego a extinguir meus dias.

Contei pra mamãe sobre a decisão de suicidar-me.

-Leva o guarda-chuva que tá garoando!-despediu-se serena.

Consumaria meu genocídio no cemitério "Sombração", assim a velha economizaria no translado da minha massa cadavérica.

Aos prantos, deitei na lápide do vovô e, com as lágrimas banhadas pelo temporal, degustei uma dose de veneno.

Segundos depois apareceu um zumbi, me assustando com a feiura da face.

-Eu já tô no inferno?

-Não! Estamos a caminho, sua poltrona é a 666. Aliás, meu nome é Mortyn.

Adentrei no ônibus que exalava um enjoativo aroma de fracasso e abrigava em seu interior as cores incolores da melancolia.

Mortyn ficava na entrada do coletivo, recepcionando efusivamente os passageiros. Cheguei a sorrir quando uma cortesã alemã de 97 anos cravou bengaladas na testa do tirano, inconformada com o término de sua estadia na Terra.

Depois dela subiu uma criança, espancada cruelmente pela própria mãe, em seguida entrou baforando um terrorista barbaçudo, reverenciado inclusive pelo motorista da comitiva.

Quem deu chilique para aceitar a carona foi um evangélico, inconformado com a indicação.

-Vou reclamar pra Deus quando a gente chegar lá!

O sacerdote só aquietou quando passamos pela Etiópia e o Mortyn trouxe no colo um bebê esquálido, retrato do egoísmo humano.

Cena sinistra.

Todos os hóspedes da arca estavam ali a contragosto, ansiavam alongar a vida...estar lá embaixo jogando o jogo.

Me senti um imbecil, assassino do meu eu, envergonhado pela covardia que me induzira ao purgatório.

Paramos no Paraíso, onde desembarcaram dois passageiros, uma madre de aura acolhedora e um diretor de TV, inventor de um tal de Big Brother.

-Eu quero descer aqui!-protestava o pastor.

Algemaram o arruaceiro no toalete do trólebus.

Saindo do Éden, os slides me deixaram maravilhado com a beleza da criação Divina. S natureza me embriagou com sua fina formosura.

-Próxima parada:Inferno!-maximizou o Mortyn.

Aflorou o arrependimento.

-Mortyn, quero desistir...preciso voltar, tenho mãe e cachorro pra cuidar.-cochichei.

-Agora já era. Quem mandou você tomar veneno?

-Veneno pra mim é igual vitamina. Por favor...por favor!!!

-Tá bom vai...só pra não pensarem que sou ruim vou te dar uma chance. Vou pegar dois papéis,escreverei MORTE em um e VIDA n'outro. Você escolherá sua sentença.

-Ok!

O trapaceiro deu um sorriso zombeteiro e rabiscou MORTE em ambos.

Os presentes, piedosos, presumiram o precipício.

Peguei um dos papéis e quando fui abri-lo um sopro Divino invadiu o comboio e levou o pergaminho pela janela.

-Quê isso cara?-surpreendeu-se o soturno.

-Ora, ésó abrir esse outro e saberá o que consta no que peguei.

-Chupa que é de uva, Mortyn!!!

Minutos mais tarde, ao abrir os olhos, me deparei com a visão de uma bela boneca de branco.

-Tô no Céu?

-Não senhor, está no hospital, conseguimos reanimá-lo a tempo.

O fundo do poço tinha molas!

Estava ansioso para rever mamãe e o Priguissa, dali em diante não me envenenaria com as adversidades.

Minha tia Luzia sempre dizia nos velórios que "Pessimismo é olhar o mundo pelo avesso".

Quando saía do quarto, revigorado com o ocorrido...

-Obrigado doutor!

-Obrigado nada, aqui está a conta...vai ser dinheiro ou cartão?

Credo em cruz!

-Mortyn...cê ainda tá ai?