A Ditadura do Cultismo
Na literatura, cultismo se define como: excessivo culto da forma, busca pela perfeição verbal nas obras, que são marcadas por grandes metáforas e hipérbatos (inversão sintática ao escrever). Em suma: obras cultistas causam uma grande impressão, mas apresentam pouco conteúdo. Essa tendência foi combatida na literatura por escritores tão distintos quanto o Padre Antônio Vieira e Oswald de Andrade. Este, vivendo em uma realidade mais próxima da nossa, levantou um questionamento importante: afinal, por que a literatura deve registrar ''dê-me um cigarro'' se o povo não fala assim? O clamor de Oswald foi ouvido e anos depois Guimarães Rosa atingiu o ápice da exaltação à linguagem popular, imortalizando o falar do sertanejo em Grande Sertão: Veredas. Abriram-se então, através da incansável luta destes autores, apenas para citar alguns, as portas para que a cultura popular brasileira se manifestasse livremente.
Alguns, contudo, podem interpretar a sentença anterior como ''abriram-se os portões do inferno''. Atualmente, o cenário musical brasileiro é dominado pelo funk, pelo forró, pelo axé e pelo sertanejo. O carnaval mobiliza milhões de foliões todos os anos ao som de Ivete Sangalo, Cláudia Leite e Daniela Mercury. Luan Santana se esgoela exaltando o meteoro da paixão e Michel Teló invade a mente de todos exclamando ''ai, delícia, assim você me mata''. Na televisão, o BBB atinge picos de audiência todos os dias, seminudez e palavras de baixo calão chegam sem controle à casa de diversos brasileiros através das novelas. Um absurdo, certo? Errado, tudo isso é apenas a expressão genuína da cultura de um povo, o verdadeiro povo brasileiro.
Em uma análise superficial, é difícil colocar em escala de valor letras como:
''Anime-se e agite bastante
Você sabe que você agita, gatinha,
Você sabe que você agita muito bem.
Venha e agite um pouco mais perto agora
E me deixe saber que você é minha, woo.''
e a famigerada:
''Ai, delícia, assim você me mata,
Ai se eu te pego, ai, ai, se eu te pego,
Delícia, delícia, assim você me mata''
Contudo, a primeira é considerada por muitos um clássico, enquanto a segunda é tida por alguns como a pior música de todos os tempos. A diferença? Aquela foi composta pelos Beatles e esta por uma funkeira baiana. A sociedade brasileira vem se tornando preconceituosa (no sentido literal da palavra), discriminatória e injusta com praticamente tudo que advém da cultura popular. O mais preocupante, ao meu ver, é que a juventude está na cume dessa tendência lamentável. Qualquer banda britânica que tenha começado a carreira em pub's ou compositor brasileiro do século passado que tenha o nome mais conhecido que suas obras (este parece ser um pré-requisito fundamental) é elevado à categoria de divino. Ou seja, música só é boa se for o mais distante possível da nossa realidade.
Importante ressaltar que o movimento antipopular não se manifesta só na música. O já citado BBB é outro alvo comum dos atuais cultistas (tenho a audácia de empregar o termo em um sentido um pouco diferente do tradicional, a saber: pessoas que valorizam requisitos pré-estabelecidos acima do conteúdo, tendo uma visão negativa de qualquer obra que fuja a tais requisitos, sem se interessar em conhecê-la de verdade). O programa da Rede Globo é tido como o ápice do besteirol e da futilidade de nossa geração. Porém, se encarado por um prisma não preconceituoso, o programa pode ser visto como um interessante exercício etnográfico. Se Claude Lévi-Strauss aprendeu lições valiosas observando os índios brasileiros, porque nós, meros mortais, não podemos tirar lições tão ou mais valiosas observando uma miríade de cidadãos, diferentes em suas personalidades, locais de origem e ''classes sociais'' sendo obrigados a conviver? A resposta é: podemos. Mas muitos não querem enxergar isto, talvez não queiram sair de sua zona de conforto e encarar a realidade que bate em sua porta. Não venho aqui dizer que o BBB irá promover um enorme acréscimo do intelecto do espectador, mas, refletindo mais profundamente, será que alguma obra, isoladamente, vai?
O conhecimento verdadeiro tem, antes de tudo, que ser amplo e vindo de diversas fontes. Nenhum intelectual genuíno se forma apenas absorvendo a cultura erudita. Rachel de Queiroz era aficionada por autores russos, leu avidamente Dostoiévski, Tolstói, Trótski. Porém, não ignorou a realidade aterradora que a cercava, e sua obra-prima, ''O Quinze'', não versa sobre um intelectual russo na Revolução Socialista de 1917 e sim sobre Chico Bento, um pacato vaqueiro tentando sobreviver no árido sertão do Ceará. Para escrever ''O Quinze'', Rachel de Queiroz teve de travar contato profundo com a cultura popular nordestina, com a música, a literatura e os costumes daquele povo. Gostou tanto do que viu que decidiu compartilhar com o mundo.
A lição de Oswald de Andrade, Guimarães Rosa e Rachel de Queiroz e sua constante luta pela libertação da arte brasileira dos pesados grilhões do academicismo e da cultura europeia parecem ter sido esquecidas.
Viva a cultura popular brasileira, viva a diversidade de formas em que hoje essa cultura se manifesta e viva, acima de tudo, a liberdade que cada cidadão brasileiro tem de ouvir, ver e ler o que lhe aprouver. Bem fazem aqueles que não querem tapar o sol com a peneira e que entendem que nada têm a perder no saudável intercâmbio entre o erudito e o popular, o sertanejo e o rock, Michel Teló e os Beatles. Experiências diversas apenas engrandecem o homem. O acesso à cultura é hoje democratizado e universal, todos têm, então, as ferramentas para terem uma formação intelectual e artística completa e diversa. Cabe a cada um decidir se quer abrir seus braços às mais variadas formas de expressão do povo brasileiro ou se prefere continuar enclausurado em sua cega adoração ao tão ultrapassado cultismo.