Nichts ist wahr...

“Nós pensamos que sabemos alguma coisa sobre as coisas quando falamos em árvores, cores, neve e flores; ainda assim, não possuímos mais que metáforas para as coisas – metáforas que não correspondem de maneira nenhuma às coisas reais”. Friedrich Nietzsche escreveu isto em “Sobre verdade e a mentira em um sentido extra-moral” (Über Wahrheit und Lüge im außermoralischen Sinn). Algumas palavras confirmam com majestade esse postulado. 'Tempo' (e todas as palavras a ele relacionadas) é uma delas: ninguém pode definir ou sequer sentir o tempo; apenas sofremo-no. Mas até que não me saí mal na minha vã tentativa de tentar explicar algo literalmente além da minha realidade: "tempo é a medida da distância entre um espaço e ele mesmo". A maioria das palavras científicas também compartilha desse mérito: a maioria, literalmente, não significa mais do que uma coisa mundana em uma língua morta. No meio propício, porém, elas representam desde uma analogia irônica entre coisas absurdamente diferentes até partículas, quase inexistentes, que definem a própria existência.

Quantas pessoas seriam, contudo, capazes de discutir com propriedade os exemplos acima? (Considerando, primeiramente, apenas as poucas pessoas capazes de discutir a própria frase de Nietzsche.) Poucas pessoas já pararam para pensar num significado para o 'tempo' ou na origem da palavra 'elétron'. Há poucos dias, por exemplo, tivemos uma “virada de ano”, sem que ninguém (ou quase ninguém) parasse e pensasse que, na verdade, não passou de uma “virada” de sábado para domingo – que, aliás, não foi mais que um ponto quase aleatório marcado no meio da fração do período de rotação da Terra em que não estamos voltados para o sol, sendo que cada palavra que utilizei nesse raciocínio (incluindo o próprio raciocínio) pode ser desdobrada num raciocínio semelhante, ad infinitum, para demonstrar o grande vácuo perpetuado pela linguagem. Com estes dois confusos parágrafos iniciais, eu atingiria apenas uma minoria que faz questão de honrar o dom da curiosidade e isso não é o que eu desejo. 'Amor'. Para essa palavra QUALQUER UM tem ou já teve um conceito.

Eu já defini o amor de muitas formas e nenhuma delas foi menos importante. Inúmeras vozes imortais se dignaram a perpetuar o significado desse simples verbete de 4 letras. 'Amor' já foi “fogo que arde sem se ver”, “um estado em que só se vê as coisas como elas não são”, “a antítese do medo” e infinitas outras coisas, dentre definições magníficas e metáforas pobres. O 'amor-palavra' é das mais difíceis de se definir, simplesmente porque o 'amor-coisa' não existe. O símbolo mais popular do amor é um coração (apesar de ser impossível imaginar como um órgão assimétrico ganhou aquela forma bonitinha), mas o amor está num órgão muito mais complexo que o coração, lar de TODAS as coisas que não existem. Antes que digam qualquer coisa, a frieza do cérebro está apenas na falida palavra que se propõe a defini-lo. Não há nada de frio no conceito de 'ideia'. O 'amor-coisa' é uma ideia e, como ideia, existe no mesmo plano do 'amor-palavra'.

Eu rio quando vejo casais jovens e/ou relacionamentos incipientes com seus Eu-te-amo’s característicos. Eu rio mais ainda quando ouço falar em amor à vida, amor à família, amor aos amigos... Mas o pior de todos é o religioso 'amor ao próximo'. Destes, é o único que representa uma falsidade consciente. Não me entendam mal: não sou contra o amor. Como disse, tenho lá minhas ideias de amor e, confesso, amei mais do que esperava amar – aliás, mais do que sou capaz. Talvez por isso, talvez apesar disso, acho risível o fato de que ninguém jamais pensa numa representação do 'amor-coisa' antes de sair jogando amor aos sete ventos. Uma ideia está livre de qualquer mácula e sujeita a todas elas, e, como disse alguém, os venenos mais perigosos estão embebidos em inocência. Por isso, a pior mácula a que se pode expor uma ideia como o amor é a pureza.

Outra coisa quase impossível de definir por estar no mesmo plano da palavra é a 'perfeição'. Pureza e perfeição se entrelaçam na insipiência e na incipiência. 'Perfeição' não é a ausência de defeitos, pois absolutamente ninguém pode definir o que é um 'defeito'; o 'defeito-coisa' está no plano ideal individual, longe de ser constante e/ou previsível. 'Perfeição' não é a ausência de máculas, mas a qualidade que damos àquilo cujas máculas 'amamos'. Afinal, o que é 'impuro' ou 'imperfeito'? Essa coisa de 'amor-puro' está ainda mais mergulhada na inexistência do que o próprio amor! Sexo, libido, ciúmes, diferenças, traição, desconfiança, superficialidade... Imperfeições? Impurezas? Um religioso me disse certa vez: “O único amor puro e verdadeiro é o de Deus”. Aceitando a micropossibilidade de existência de um 'Deus-coisa', Ele te dá o poder de escolher seu caminho, mas te pune dependendo de qual é ele. Puro? Perfeito?

Que pureza? Que perfeição? Para casais jovens, dois dias e lá vem o primeiro “Eu te amo”. Os velhos não fazem mais que se tolerar. Filhos repetem aos pais “eu te amo” como papagaios amestrados. Amigos vêm e vão, traem e são traídos, confiam e são confiados. O 'próximo' não é absolutamente 'ninguém'. Existem até pessoas, no auge da estupidez, professando amor eterno a ídolos musicais ou times de futebol. O amor se tornou uma grande necessidade e até uma doença: possessividade, borderlines, lascívia, depressão... E aparecem esses conceitos burros de amor, sempre muito lindo, sempre muito doloroso. Chega-se ao extremo de limitar o amor sob o estreito conceito de sexualidade. Não raro, vemos cachorros montados em almofadas, cadeiras e até em nossas pernas, simulando o sexo. Se não fôssemos criados em sociedade, alguém duvida que isso seria menos comum em humanos? Sexo ou preferência pelo gênero nada tem a ver com amor! Tampouco ciúmes ou monogamia: araras passam a vida inteira com o mesmo parceiro, não trocam nem se o parceiro morre; isso não ocorre porque elas amam, mas porque elas não são capazes de fazer de outro jeito. Pelo mesmo motivo, nem mesmo a fé pode nos tirar completamente a vontade incontrolável de continuar vivendo. E isso também não é amor.

Tive e tenho muitos conceitos para amor e nenhum deles nunca me deixou na mão. O mais simples e completo deles é: amor é a necessidade da felicidade de outrem tanto quanto da sua própria. Platão chamou de amor puro ou ideal aquele que existe 'apenas' no plano ideal, isto é, um amor que não se macula com o plano físico. Esse conceito, embora o considere muito bom, não me é 'perfeito'. Amor é uma ideia, não pode ser maculado pelo plano físico... Ou pode? É normal sentir ciúmes, desejo sexual, é normal até a curiosidade homossexual para um heterossexual e vice-versa. Nada disso tem a ver com amor. Amor é o sentimento mais difícil de ser conhecido. Quem acha que ama, provavelmente não ama. E no fundo, não foi novidade para ninguém quando eu disse que o amor não existe.

Como escritor, respeito a nulidade dos significados e considero ignóbil o desprezo pelas palavras. Ainda mais hediondo me é, na qualidade de artista, o desprezo pela beleza – ainda que 'beleza' entre no mesmo mérito de 'defeito'. Gostar é para todos, amar é para poucos e ninguém é capaz de amar sem antes respeitar a frieza de sua condição de ideia, sem antes perceber que para amar é preciso um cérebro, não um coração. Se é possível amar o amor? Claro que sim! O amor é e pode ser perfeito, e esse é o deus ex machĭnā dessa discussão Mas o amor está além da capacidade de amar, pois só há amor quando há perfeição e só há perfeição quando amarmos o que odiamos. Mas Ódio é uma palavra para outra ocasião... Que Nietzsche, como o iniciou, cale esse texto: “Nós não amamos viver porque estamos habituados a viver, mas porque estamos habituados a amar”.