Chapeuzinho Vermelho
 
Gente nova no bairro, pensei quando a vi pela primeira vez.
 
Desfilando a graça dos seus quatorze ou quinze anos, passava todos os dias em frente minha casa e a carpintaria do meu pai, que ficava ao lado e onde eu trabalhava. Loira, cabelo Chanel, e um casaco vermelho que lhe dava um encanto singular. Jeito serelepe. Idade regulando com a minha.

Embora sem o chapéu e a cesta no braço, o casaco vermelho imediatamente me trouxe a personagem central do clássico infantil de Charles Perrault, Le Petit Chaperon Rouge. Chapeuzinho Vermelho.

 
Caí pelo charme da loirinha. Na hora habitual de ela passar, eu ficava na frente da carpintaria, à espreita. Ela parecia ir às nuvens. Mal chegara ao lugar e já ganhara um admirador. Paquera assíduo. Candidato a namoradinho.
 
Um domingo, voltando da matinê, peguei o ônibus na Praça Tiradentes. Ela estava sentada num banco bem à frente, no lado direito. Ocupava o assento da janela, deixando vago o do corredor.
 
Pernas meio moles, dado o choque da agradável surpresa, disse de mim para comigo:
 
- É ela, a Chapeuzinho Vermelho! Deixou o assento do lado para você. E aí, vai amarelar? É a sua chance. Não paquerou? Então vá lá. Nada de pernas moles...

Não podia deixar escapar a oportunidade. Respirei fundo e fui sentar-me ao lado dela.

 
- Oi...
 
- Oi.
 
- Passeando? Matinê, também? - arrisquei.
 
- Não. Fui a um concerto na Reitoria.
 
Além de bonita, a moça já mostrava erudição. Bom começo. Se ela sabe o que é bom, vai gostar de mim - pensei sem modéstia.
 
Perguntei seu nome. Respondeu e sorriu. Deixou ver então um dos incisivos centrais superiores quebrado na diagonal, até o meio. Ou um pouco menos.

Decidi de imediato: namoradinha de dentinho quebrado não quero. Uma mocinha tão bonita e faceira, com um dente quebrado! Não quero. Que pena.


A conversa não prosperou lá essas coisas, mas fui levando. Quando o ônibus chegou ao meu ponto, desci. Não fiquei para o próximo, que era o dela.

Contudo, a menina era muito graciosa. Não a querendo para namorada, deixar de paquerar não podia. De vez em quando nos encontrávamos por acaso e batíamos um breve papo. Sem compromisso. Coisa ligeira.

Tempos depois, convidou-me para uma festinha americana na sua casa.

 
- Então, sábado, às quatro. Não esqueça a Coca-Cola.
 
Festa americana era assim: as meninas levavam os salgados e doces e os meninos, refrigerantes. E, naquele tempo, era só refrigerante. O “tubão” ainda não tinha sido inventado e os pais do anfitrião, ou anfitriã, montavam guarda. Quem não se comportasse, ia embora. Ou a festa acabava.
 
Não estava muito a fim. Na véspera, inventei uma desculpa e declinei.

No sábado, na hora da festa, vi passar na rua dos fundos da minha casa a moreninha. Era sobrinha de uma vizinha. Recém-chegada ao bairro, ela viera passar uns tempos com a tia. Também uma graça. Mais nesse dia. Toda ajeitada, prato de doces ou salgados nas mãos. Nunca a tinha visto tão arrumadinha.

 
De novo, disse para mim mesmo:
 
- Deve estar indo à festa da Chapeuzinho Vermelho. Ainda bem que não vou. Que sorte!
 
Paquerando a moreninha na rua dos fundos e a loirinha na da frente, na festa iria me sentir embaraçado. Não sabia que elas já se conheciam.
 
Certa manhã ensolarada, voltando para casa pela rua da frente, eu vi a loirinha do outro lado, andando no sentido contrário ao meu, quase na frente do açougue. Não sei se ela tinha me visto. Mas, ao me preparar para atravessar a rua e ir ao seu encontro, notei que cambaleava e, uns passos depois, caiu.

Assustado e covarde, desisti da travessia e, deixando o socorro para duas senhoras que passavam ao lado dela, toquei-me para casa.

 
Entendi, então, o motivo do dentinho quebrado. Uma menina tão linda e alegre, sofrendo de ataque. Caindo e se machucando. Que pena.
 
Bem mais tarde, no concerto anual da Orquestra Sinfônica Juvenil da Universidade Federal do Paraná, assim que as cortinas do Teatro da Reitoria se abriram e dei de cara com a plateia, ocorreu-me que podia ter convidado a Chapeuzinho Vermelho. Ela iria adorar. Foi uma falha  imperdoável eu ter me esquecido.

Seguiu-se um concerto muito bonito.

 
Sob a regência do maestro Gedeão Martins, a orquestra e o coral do Colégio Martinus, preparado pela maestrina Hildegard Soboll Martins, mulher do talentoso maestro, executaram um repertório não muito complexo, porém agradável.
 
No naipe das flautas, o Norton Morozowicz, hoje maestro consagrado, era o primeiro. Ulrike Graf, a mais bela da orquestra, tocava violino - ou seria viola? Os irmãos Pinto, um oboé, o outro violino.
 
Ao tocar com eles e todos os demais, eu me sentia orgulhoso e honrado e, à medida que o concerto progredia, mais feliz. Para um incipiente clarinetista desprovido de talento, fazer parte daquele grupo de adolescentes cheios de vontade e brilho, era mesmo um privilégio.
 
Embora preferisse o gênero big band, no melhor estilo americano, a orquestras sinfônicas, rendia-me à sonoridade daquela combinação bem arranjada de cordas, madeiras, metais, percussão e vozes. A parceria de orquestra e coral no palco propiciava ao público um esplendoroso espetáculo e, a mim, uma noite inesquecível. Não demorei em concluir que cada minuto de ensaio, nos meses que antecederam à apresentação, fora regiamente compensado.

Quando as cortinas se fecharam, lamentei: a Chapeuzinho Vermelho perdeu um grande concerto. Que pena.
 


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N. do A. – Na ilustração, Chapeuzinho Vermelho de William M. Spittle (Inglaterra, 1858-1917).
João Carlos Hey
Enviado por João Carlos Hey em 07/01/2012
Reeditado em 06/05/2021
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