Só às escondidas é que mato o marinheiro.

Umedeceu o polegar e o indicador com saliva. De pronto, prendeu a chama que luzia forte, ainda, e aspirou aquele cheiro de vela apagada que ficou dançando no ar. Lembrou de cheiro de fim de velório. Deitada na cama, olhos abertos, no escuro, a pensar. Matei mais um. Matei mais um. Seu pensamento foi pro mar e o marinheiro morto.

Minha avó sempre dizia que não se devia apagar a vela que estava a queimar, ainda chorando aquelas lágrimas de parafina. Vela tinha que se acabar, sozinha, ir morrendo de tanto se gastar. Que nem gente. Gente devia morrer assim, só de velho, de gasto. Num pode não, dizia. Se a gente apaga a vela, assim, que não está no fim, um marinheiro morre. A gente mata um marinheiro que peleja com Netuno, em alto mar. Mar escuro.

E, da primeira vez que ela ouviu isso da avó, era pequenininha e não entendia quem era esse Netuno. Adormeceu já mulher feita, a pensar no marinheiro morto. Era forte, bonito, com jeito de homem de amar. Mas (será que já sonhava?) ele tinha os olhos voltados pra longe, bem longe.. Então, tá bem feito, que morra esse dono dos olhos distantes, que morra no fundo do mar!!!. Faria assim, daquela noite em diante, às escondidas, sem que ninguém percebesse ou visse, apagaria as velas, sem perdão. Mas, quando chegasse o marinheiro que a olhasse, devagar, bem pra ela, bem de perto, bem no fundo, esse estaria salvo. Salvo. Teria luz até o fim. E teriam, os dois, ela e ele, salvação.