Uma crônica bem corriqueira

 
Mesmo colocando o pé esquerdo primeiro no chão sempre me levanto com o pé direito. Não sou dessas pessoas que já se levantam de mal com a vida. É preciso muita coisa para me irritar e deixar mal humorada. Chuva em excesso, sim. Dessas que emendam a noite com o dia e o dia com a noite. Mas basta um raiozinho de sol aparecer entre as nuvens e meu humor se altera imediatamente. Outra coisa é perder coisas. Chaves, por exemplo. Já tentei de tudo, desde ter um único chaveiro ou repartir minhas chaves em molhos diferentes. Tenho três, no momento. Um para o carro, um mapa do Brasil. Outro para a casa, o escudo da Logosofia e um para a minha Fábrica de Pães – um peixinho prateado. Ontem perdi a chave de meu carro e deixei dentro do carro os outros molhos. Além do controle automático da Garage.

Procurei por todos os lugares imagináveis e não imagináveis, mas fui agüentando bem. Tinha circulado pouco, por causa da chuva. Achei que acharia fácil a chave. Anoiteceu e nada. Fui para casa deixando o carro lá na Padaria. Minha intenção era pegar a chave sobressalente do carro para trazê-lo para casa, mas só me animei quando tive um insight: eu havia ouvido um barulho de chave caindo quando estava assentada junto a minha mesa contando tostões. Saí quase correndo porque pensei que havia resolvido o mistério. Mas que nada – esmiucei cada pedacinho de chão e olha que lá está uma bagunça tão grande que nem dá para contar. O caos se instalou durante a Reforma e o nosso cubículo se transformou em um depósito. Glaucia e eu temos tentado devolver as coisas para os seus devidos lugares, mas as coisas parecem que criaram raízes. Injuriada com tanta bagunça enquanto procurava a chave fui colocando algumas coisas nos lugares. Lixo na lixeira. Em uma caixinha fui colocando coisas para no dia seguinte enviá-las para os lugares certos: pregos, alfinetes, chaveiros sem chave, chaves sem fechaduras. Fui colocando e o tempo passando e o escritório se ajeitando. Cansada, resolvi ir embora. Guardei o que podia guardar e me levantei em busca da chave sobressalente. Mas onde estaria ela?Juro que eu pensei que ia ter um ataque de nervos. Juro que pensei que só havia dois caminhos: chorar ou esbravejar. Não fiz nada disso, mas comecei a procurar na Padaria inteira, até em lugares onde eu não havia estado. Mas fui sincera, avisei para os funcionários que encerravam a noite: Vocês estão vendo uma mulher à beira de um ataque de nervos. Agora mesmo vou começar a quebrar ovos. Pensei, mas não falei. Não ia ser muito legal para minha imagem contar-lhes que certa vez, no século passado, para acabar com uma briga doméstica eu peguei uma caixa com doze dúzias de ovos e fui atirando um a um nas paredes da copa. Como tenho a língua solta voltei para o escritório antes que começasse a falar demais. Para acalmar-me peguei a caixinha onde eu havia separado trecos e troços e virei sobre a mesa – e lá estava ela, a chave sobressalente. Saí de fininho sem falar nada para ninguém, chega de vexame, pensei. Mas o João, quando foi fechar o pátio certamente percebeu que eu havia achado a chave. Meu carro não estava mais lá.

Hoje fui ao Banco e enquanto fazia o serviço que deveria ser feito pelos bancários, em frente a uma daquelas máquinas cheias de vontade própria, vi algo brilhando perto dos meus pés – um chaveiro. Não, não era o meu chaveiro. Desculpe se os fiz pensar assim. Mas quando avistei o chaveiro um clic se fez em meu cérebro de dois neurônios. Saí correndo depois de entregar as chaves achadas para um funcionário e fui em busca da perdida. Fui para outro Banco, o que eu tinha ido no dia anterior. Não, não vou reproduzir aqui a conversa que tive com dois funcionários do Banco. Só vou contar que meu chaveiro estava lá. E o sol brilhou iluminando todo o Universo.