DDD - Diário de Derrotas [15]

30/12/2011

Pouco antes das duas da manhã, pouco antes de dormir, decidi que faria uma tatuagem no dia seguinte. Bem lá no fundo, eu estava torcendo para que isso fosse uma inspiração de bêbado, e que ao acordar tal inspiração seria inexistente.

Às oito e meia eu consegui sair da cama. Eu tinha que ir trabalhar. E o "trabalhar" seria basicamente tirar um extrato bancário e eliminar os recibos de possíveis pagamentos e voltar pra casa. O agravante é que durante a semana inteira não caiu quase nada de pagamentos. Por que fariam isso num dia que sequer haveria expediente bancário? Então, às nove - hora que já deveria estar no escritório - eu - de ressaca, com uma camiseta com a gola toda esgarçada e com uma calça com um bolso que fez com que meu celular fosse parar dentro do tênis, puto da vida, ansioso pra ter as agulhas perfurando e tingindo minha canela - saí de casa.

Resolveram pagar tudo o que não pagaram durante a semana, e eu, que pensei que me deslocar até lá pra não fazer nada seria o cúmulo do azar, me vi xingando imensamente por dentro por ter que trabalhar no dia que vi São Paulo mais fantasma do que nunca. Com toda a ansiedade de agulhas rasgando minha carne, inserindo tinta, eternizando uma paixão antiga.

Sem concentração alguma, comendo torradas com manteiga, pegando nas folhas com os dedos engordurados, queimando a língua com chá de camomila, eliminando as notas, conversando no facebook e no MSN e alimentando e tentando tirar fotos de um pardal que pousa e fica cantando na minha janela, querendo ir embora logo e dormir, com a perna ardendo, com uma ferida colorida aberta, selada em plástico de embalar frutas. Caralho.

Liguei pro estúdio que fiz minha primeira - e única - tatuagem. Só chamou. Liguei para um outro. Chamou algumas vezes, e atenderam. Me identifiquei e perguntei se era do estúdio do fulano.

- Sim.

- Vocês estão trabalhando hoje?

- Cara, acabamos de fechar... E agora só dia dez.

- Hum... E quanto que é a sessão?

- Quatrocentos reais, duas horas.

- Quatrocentos reais duas horas?

- Sim.

- Bom, era só isso... Obrigado, viu?

- Eu que agradeço. Boas festas!

- Pro senhor também. Bom dia. Tchau.

- Falou!

Abri o site do banco que tenho conta. O diabo espicaçando o desejo de tatuar era tanto que sequer havia lembrado que para tanto eu precisava de dinheiro, de muito dinheiro, e não sabia se tinha o montante suficiente disponível. Tinha. Tinha muito dinheiro.

O problema de passar cinco anos ininterruptos no cheque especial é que qualquer trinta reais positivo na conta vira "muito dinheiro".

Saí do escritório ciente de que não estava bem da cabeça: estava sequioso por um pedaço de cadáver tostado e redondo com cheddar e cebola temperada, envoltos por pão redondo com gergelim. Queria um lanche daquela rede de fast-food mundialmente conhecida e etc.

Fui andando até lá, um tanto quanto aliviado por não ter podido fazer a tatuagem - eu precisaria do dinheiro, e não estava tão certo assim de que era isso mesmo que eu queria; não naquele momento específico, quero dizer, porque sempre que não tenho condições financeiras de pagá-la, eu a quero.

Abri a porta do estabelecimento e me deparei com mil filas com quinhentas pessoas, daí raciocinei melhor e decidi ir até a Augusta almoçar comida de verdade pelo mesmo preço no Vitrine.

E passar no estúdio de um tatuador bem reconhecido e recomendado do meio e tal.

Comi como se não houvesse amanhã e fui até o tal estúdio. Um paraguaio que estava lá de plantão me atendeu, com seu sotaque esquisito e tudo o mais.

Mostrei o desenho que queria fazer, expliquei as cores que queria, os detalhes e o tamanho, e ele falou que o valor girava em torno dos duzentos e cinquenta.

- Pra mais. - Acrescentou ele.

- Hum... E você é tatuador também?

- Sim.

- Posso ver seus trampos?

- Claro. - Apontou umas pastas num banquinho. - O meu é aquele menorzinho.

- Beleza.

Sentei e fiquei olhando e me divertindo com os desenhos. Eu analisava cada detalhe de uma maneira que nunca jamais analisei. Quando fechei o portfólio do paraguaio, decidi que não queria fazer com ele. Perguntei a ele sobre o fulano famoso e recomendado.

- Ele tá na gringa.

Um dos desenhos do paraguaio consistia num corvo bizarro, encimado num crânio com uma venda vermelha sobre os orifícios dos olhos, e tudo estava cercado pelo equivalente castelhano de "quem cria corvos, terá por eles os olhos arrancados". Lembrei dos meus problemas com povo com quem divido o teto. Apesar de ter gostado da idéia, não gostei do trabalho do cara. Não teve jeito; pedi um cartão e fiquei de ligar se por algum acaso resolvesse o que fazer da vida.

Perambulei sem rumo pelas adjacências, sentindo, finalmente, uma solidão que há tempos não conseguia sentir. Sentia meus pensamentos confluindo em estratagemas que, em outras circunstâncias, seriam interrompidos, suscitando um mau humor que paira sobre minha cabeça disfarçado de nuvem negra e sarcástica, com aquela ressaca de incompletude, de pensamento incompleto; aquela sensação de folhas mortas que boiavam unidas e em paz num tanque d'água antes que alguém lá jogasse uma pedra e as separasse todas.

Aí fui pra Galeria do Rock perder tempo. Carnero iria lá pra fazer alguma coisa e eu o acompanharia - não sem a sombra da possibilidade de acabar no divã de um tatuador esperto.

Acontece que o clima da Galeria sempre me desanima... É muito fracassado pra pouco metro quadrado. E de fracassado já basta o reflexo que vejo todos os dias pela manhã enquanto escovo dentes que caem do nada...

Ficamos de saco cheio e resolvemos ir embora. Algo simples, que não foi tão fácil e que, fazendo associação com meu sono e com o calor, me deixaram num aziúme épico.

Entrei em casa dali duas horas e fui direto pra cama e dormi das 19h às 23h tão bem como em nenhum outro dia de 2011.

Apesar das três vezes que acordei com balbúrdia e tive que mandar uma cambada de filha da puta ir tomar no cu, a fazer barulho na casa do caralho, senão eu levantaria da cama e enfiaria a porrada em todo mundo.

Ainda às onze da noite rolava certo barulho dos meus irmãos e das primas deles. Levantei, com dor de cabeça de tanta fome, comi umas frutas com Neston, passei raiva jogando Metal Slug, li umas três páginas do Monstros Invisíveis, vi umas fotos do QueenFoosuh, deixei o Old Boy baixando e uma playlist com Escalera tocando e voltei pra cama.

Ajeitei o relógio pra despertar - em pleno sábado com academia fechada. Eu tinha horário marcado no cabeleireiro...

Essa é a minha vida e, como diria Tyler Durden: "está acabando a cada minuto". Amém.

*

31/12/2011

Acordei azedo, é tudo que posso dizer. Mas, no segundo subseqüente, senti o cheiro da chuva e de café fresco, e ouvi o silêncio da casa, sendo maculado somente pelo som baixo das minhas caixinhas velhas. Melhorei um pouco.

Levantei, comi, lavei o cabelo e fui - levando chuva no rabo - até o meu carrasco.

Eu estava sentado, observando ele mais conversando do que cortando o cabelo de um japonês que já nem tinha tanto cabelo assim, quando me dei conta de que no meu último corte de cabelo, três ou quatro meses atrás, eu havia esquecido de carregar a bateria do MP4 e tive que passar quase duas horas ouvindo a rádio da porra da Igreja Universal.

Sorri: desta vez estava com o celular, com melhor áudio do que o dos tocadores coreanos, e com o fone bem fincado nas minhas orelhas.

Aí que o corte do japonês de repente acabou e chegou a minha vez. Com meia hora de atraso em relação ao horário que eu havia marcado e chegado com cinco minutos de antecedência.

E um tal pastorzinho filho da puta estava no auge dos gritos na rádio, supostamente exorcizando algum bom ator.

Sentei naquela cadeira, me olhando no espelho, como se tivesse colocando a cabeça no cepo que fica abaixo da guilhotina.

E a cada tesourada levanto dois ou três dedos dos meu cachos, ficando mais feio a cada tesourada, me olhando no espelho frontal e no espelho que ficava atrás, no alto, eu ouvia uns urros grotescos de alguém que o diabo havia possuído e que um pastorzinho que caga e mija como qualquer um, e sua e fede como qualquer um, estava exorcizando.

Aí parou um carro caro do outro lado da rua e saiu de lá um rapaz que entrou educado, dando bom dia e tudo o mais - coisa raríssima na província que resido.

E então ele e meu algoz capilar começaram uma conversa amigável sobre os ônus e as benesses de ter um carro, enquanto uma locutora narrava a invenção de um chip que futuramente inseririam na nossa testa ou no dorso da mão, e que esse chip, com seus nomes, com os nomes e números das empresas que o estavam patrocinando, resultariam no 666, o número da besta. E eu só querendo sair dali, parar de me olhar cada vez mais degradante no espelho; pagar e sumir, caralho. Porque não há maneira de cortar o cabelo com os fones socados no ouvido. Só por isso.

Aí acabou a tortura e eu dei uma olhada de soslaio no espelho, enquanto ele varria tufos e tufos do meu cabelo sensual. Não gostei do que vi.

- Gostou? - Perguntou ele.

- Opa! - Respondi, estendendo o cartão pra pagar a coisa toda.

- Poxa, já faz um tempo que estou sem máquina... Só em dinheiro.

- Putz. Vou lá em casa pegar o dinheiro e já volto.

Uma vez em casa, fui motivo de chacota por causa do meu novo penteado. Peguei o dinheiro e um guarda-chuvinha ridículo e pequeno e florido, coloquei uma blusa e voltei lá, sentindo calor. Paguei a coisa, desejei boas festas e fui até o mercado comprar cerveja pras festividades na casa da minha querida Gabriela Chaves.

Não tinha da cerveja que combinamos todos de comprar.

Fiquei durante um tempo parasitando e olhando as cervejas, já meio de saco cheio dessa porra desse negócio chato e repetitivo que é toda virada de ano, da vontade de SUMIR que é acentuada cada vez mais a cada ano que passa.

Eis que decidi por uma marca de cerveja nacional e barata e tolerável, e rasguei um saco plástico que envolvia quatro packs, com seis em cada um. Separei dois packs dos demais, sentindo um mau humor crescente por causa do meu cabelo feio, da minha calça com bolso furado, do caralho do guarda-chuva me incomodando; cogitando a possibilidade de comprar um uísque de oito reais e virá-lo de uma vez com toda a sorte de remédios que pudesse dispor em casa e morrer.

Foi quando que peguei um deles que tudo aconteceu: eu não teria como levá-los até o caixa com o caralho do guarda-chuva enchendo o saco.

Foi quando segurei um entre os dedos e coloquei o outro debaixo do braço e peguei o guarda-chuva na outra mão que tudo aconteceu: primeiro, escapou uma garrafa, que tentei, sem sucesso, interromper a queda com o pé - ela se espatifou; depois, outra e outra, e outra e outra; o barulho seco do vidro deixando de formar uma garrafa, resumindo-se a cacos embebidos em cerveja quente, todo um silêncio com pescoços se voltando pra onde eu estava, vendo cada uma das doze garrafas caindo a meus pés, inundando o corredor numa cacofonia oca de cacos espelhados; uma heresia das maiores.

Quando tudo acabou, restou apenas uma garrafa intacta e eu, sem saber como ou por quê, com o guarda-chuva aberto.

Uma mulher que estava atrás de mim, de chinelo, disse:

- Sai de fininho, fio.

- A senhora se machucou?

- Não... Não esquenta comigo não; fala que escorregou, senão vai ter que pagar.

Meu problema não era nem pagar o prejuízo.

Meu problema era um bode atingido por um raio do Guiodai, do Jaspion.

Fiquei juntando os cacos num canto, enquanto uma voz alta e metálica e quase ininteligível saía das caixas de som espalhadas por todos os corredores, solicitando com "urgência a responsável pela manutenção da limpeza na frente de caixa".

Ou o que quer que fosse.

Peguei quatro latões, determinado a bebê-los sozinho no meu quarto escuro e imundo de derrotado solitário.

E fiz como me sugeriu a moça que assistiu de camarote meu show de vergonha alheia: saí de fininho.

Cheguei em casa molhado - coloquei o guarda-chuva desgraçado na sacola das cervejas e andei debaixo de chuva mesmo -, depois de ter comido um pastel de feira sem gosto e bebido um caldo de cana maravilhoso, abri cada uma das quatro latas e escrevi isso aqui, só pra desejar a mim mesmo um ano novo decente porque, olha, 2011 não foi fácil não, viu? E porque, também, como diria meu querido Douglas: "se não for osso a gente estranha".

E estranha muito.

31/12/2011 - 14h30m

Rafael P Abreu
Enviado por Rafael P Abreu em 31/12/2011
Reeditado em 31/12/2011
Código do texto: T3415873
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