Eu e meu avô Guilherme

 

Eu e meu avô Guilherme não tivemos muito tempo um para o outro. Cheguei a este mundo em junho, fechando o outono, e ele se foi em outubro do mesmo ano, no início da primavera. Entre o nosso encontro e a separação, apenas um inverno. Sequer houve tempo para um retrato.

 

Os anos foram passando e fui conhecendo um pouco dele através de algumas e não muitas histórias. Ora contadas por minha mãe, ora por meu pai. Outras vezes ouvidas aqui ou ali.

 

Era homem quieto, de pouco falar. Não gostava de ofender. Cigarrinho de palha ou cachimbo na boca. Respeito e amor às pessoas, animais e plantas. À natureza em geral.

 

- Joanita, primeiro os bichos, depois a gente - ele ensinava à nora.

 

Minha mãe aprendeu a lição. Até o fim da vida ela agiu assim: levantava-se muito cedo, alimentava as galinhas e os coelhos. Quirera para os pombos. Depois, o café dos humanos. O papagaio, porque no desjejum preferia pão umedecido no café com leite, esperava a vez dos humanos. Aguentava sem reclamar.

 

Criei-me ouvindo minha mãe e meu pai repassando os ensinamentos do meu avô. O opa falava isso, dizia aquilo, ensinava assim, comia isso com aquilo.

 

Meu pai, que gostava de caçar e pescar, tinha armas em casa. Mas, para ressaltar o espírito de paz do meu avô, repetia:

 

- Seu avô nunca teve uma arma. Apenas um facão, que carregava na carroça para cortar mato, e canivete para picar o fumo. Só.

 

E meus filhos ainda ouvem de mim um pouco da filosofia dele.

 

- Meu avô Guilherme sempre dizia que...

 

Em 1933, quando ele contava 68 anos, minha avó Maria o fez viúvo. Poucos anos depois meus pais foram morar com ele. Foi proposta do tio Afonso.

 

Nos dezesseis anos que se seguiram, meu pai providenciava o sustento, minha mãe os cuidados e o tio Afonso roupas, raros remédios e o dinheirinho para o fumo em corda e as pingas da semana.

 

Todo sábado o tio Afonso o visitava. Trazia a mesada e o que mais ele estivesse precisando. Minha irmã, menina, aguardava esse dia com ansiedade. Para ela, chocolate e balinhas. De vez em quando, um presentinho. Muito generoso o tio Afonso. Nunca esquecia, nunca falhava.

 

Talvez porque minha mãe tivesse perdido seu pai ainda criança, devotava ao velho sogro amor filial. No leito de morte ele pediu uma cachacinha.

 

- Vou conversar com o médico, opa.

 

- Doutor, ele quer cachaça.

 

- Não há mais o que fazer. Está sendo vencido pela idade. Questão de dias. Pode dar. Não precisa negar mais nada.

 

Minha mãe o ajudou a levar o cálice aos lábios. Ele sorveu o líquido em pequenos goles, com o brilho que os olhos ainda podiam mostrar. Parecia ter reencontrado o néctar da vida. Feliz. E minha mãe, ao senti-lo assim, também experimentou felicidade.

 

Em alemão, a língua oficial da casa naqueles tempos, ele disse:

 

- Joanita, quero que saiba. Durante todos esses anos, você não foi para mim uma nora. Foi muito mais, uma filha. A melhor das filhas.

 

O dia da partida não demorou a chegar. Um domingo. No quarto, em torno do leito, além da nora dedicada, os filhos e filhas. Alguns não continham as lágrimas. O silêncio era de todos e a tristeza também.

 

Minha mãe pediu:

 

- Por favor, agora saiam. Este momento é só nosso; dele e meu.

 

Todos obedeceram. Ela trancou a porta e sentou-se na beirada da cama, ao seu lado.

 

E assim meu avô foi ao encontro do seu dia. Deu o último suspiro segurando a mão da minha mãe. Parecia ter entrado lento em sono profundo e tranqüilo, confiante na mão amiga e amorosa que o amparava. Em paz, sem sofrer a agonia que precede a morte.

 

Se não conheci o meu avô Guilherme fisicamente, sua memória esteve sempre presente na minha vida. Quando fui me dando conta das coisas, lembranças dele ainda permaneciam na casa e no quintal. O velho paiol, onde ele guardava a carroça e as ferramentas, ainda abrigava alguns arreios pendurados nas paredes sem pintura. Embaixo da casa, a carroça desmontada.

 

- Pai, vá lá no Zeco e compre dois cavalos para mim. Vamos montar a carroça do opa - criança de poucos anos, eu ordenava o pedido nunca atendido.

 

Todo mundo achava engraçado o devaneio do menino que nunca viu um retrato do avô, mas que falava dele com tanta naturalidade como se ele ainda estivesse ali.

 

Num fim de tarde, eu já com uns sete ou oito anos, indo à casa do meu amigo Carlos Alberto Gapski. Ele morava nos fundos da fábrica do seu pai e de um tio. Na época, a rua dele era apenas um beco numa das frentes do nosso terreno.

 

Como sempre fazia, eu poderia ter seguido pelo caminho mais curto e lógico. Sairia da cozinha, descendo as escadas, e avançaria em linha reta até alcançar o beco. Daí era só virar à esquerda e em poucos passos estaria na frente da pequena indústria de máquinas tipográficas dos irmãos Gapski.

 

Naquela tarde, sem razão aparente, contrariei a lógica e peguei um caminho diferente e mais longo. Desci as escadas e, em vez de seguir reto para a rua, dobrei à esquerda e, no final da casa, à esquerda de novo, rumando entre a casa e a lateral direita da carpintaria do meu pai. Terminado o trecho entre as duas edificações, dobrei à destra, logo após o canteiro das palmas-se-são-josé. Passei em frente à carpintaria e, por fim, virei à direita novamente e me vi pronto para seguir em linha reta até a casa do meu amigo. Seguiria margeando o lado esquerdo do barracão e cruzaria o beco, se a marcha não tivesse sido interrompida nesse ponto.

 

Nessa lateral, aproveitando o declive do terreno, o porão mais alto era aproveitado para armazenar as tábuas de pinho. Sempre havia ali muitas pilhas desta madeira branca.

 

A carpintaria estava fechada. Os operários tinham ido embora e não havia mais ninguém por lá. Era hora do lusco fusco. Nem dia, nem noite. E sem o barulho das máquinas, àquela hora já era possível ouvir o coaxar dos sapos e rãs no banhado.

 

Ao entrar na reta final do trajeto, meus olhos instintivamente procuraram o porão. Apesar do crepúsculo, enxerguei, com bastante nitidez, a figura de um velho sentado numa pilha de madeira, na extremidade onde começava o porão. Olhava para mim.

 

A pilha tinha mais ou menos a altura de uma cadeira, de modo que era possível ele ter os pés no chão e as mãos, uma sobre a outra, apoiadas no cabo curvo de uma bengala no prumo, sem que isso lhe exigisse arcar demais o corpo para a frente.

 

Estanquei assustado. Poucos segundos depois, como se evaporasse, o homem desapareceu sem ter saído do lugar. Dei um giro de 180 graus e voltei correndo para casa.

 

Esbaforido, contei para minha mãe e minha irmã.

 

- Vi um velho embaixo da oficina. Ele sumiu.

 

Com a imagem ainda na retina, descrevi o que consegui ver do velho.

 

- Era o opa! O Vô Guilherme! Elas exclamaram em uníssono.

 

Sendo avô ou não, nunca mais fiz aquele caminho, a não ser à plena luz do dia e com gente por perto.

 

Muitos anos transcorreram para que eu pudesse compreender e aceitar essa passagem. Estando em mundos diferentes, ao meu avô Guilherme é permitido me ver, mas não eu a ele. Contudo, naquele dia, ele deu um jeitinho.

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N. do A. - Na ilustração, a carpintaria do meu pai e a casa do meu avô Guilherme, onde eu nasci e me criei. Foto de Max Holdorf.

João Carlos Hey
Enviado por João Carlos Hey em 31/12/2011
Reeditado em 24/12/2021
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