Assalto Em Montevidéu Ou Uma Alma Perdida
Corria o ano de 2008, e outubro já estava perto do seu findar. Aquela fora a primeira vez que tive a oportunidade de conhecer terras estrangeiras. Era uma noite fria, assim costumava ser naquela época do ano. Estava vislumbrado com aquela capital e especialmente com Ciudad Vieja – onde se encontrava o seu centro histórico. Ao andar por aquelas ruas estreitas e impregnadas de histórias, ficava tentando imaginar quantas estórias nasceram e morreram por aquelas vias, quantos poemas foram inspirados em seus caminhos? Muitos talvez. Nesse dia eu havia caminhado bastante, como todo bom aventureiro, tinha ânsia por conhecer o novo e desbravar cada pedaço daquele mundo que tampouco sabia. Logo cedo peguei o meu mapa, aproveitei que teria um dia inteiro sem aulas na Faculdad de Ciencias da Universidad De La República – local onde estava acontecendo o meu curso. Nesse dia eu finalmente havia conhecido a Biblioteca Nacional, desejo que carregava desde a primeira vez que passei diante dela.
É impressionante como o relógio costuma trabalhar mais rápido quando estamos nos divertindo. Mal havia saído do hotel no início da manhã e quando percebo: uma manhã e uma tarde já haviam me deixado naquele dia. Decidi que era hora de jantar, não que estivesse com muita fome ou que já fosse muito tarde, mas eu estava encantado com aquela pequena pizzaria a qual apresentava um ar aconchegante. Enquanto aguardava a minha pizza quadrada com a porção extra de queijo – caso você desejasse queijo em sua pizza teria que pedir uma porção separada, pois lá além do formato estranho as pizzas nunca vêm com queijo. Quando noto, havia uma moça que não aparentava está ali para comer aquela pizza geométrica, tampouco lembrava a figura de algum funcionário. Sua pele era branca como uma nuvem solitária em dia ensolarado. Seu pequeno corpo raquítico fez-me pensar se as leis da física tinham poder sobre ela. Sua face tinha uns traços tão delicados que eu poderia jurar que foram feitos a mão. Trajava um casaco cinza que claramente mostrava o seu longo tempo de uso. Foi então que notei que as pessoas lhes davam dinheiro e logo percebi que se tratava de uma pessoa em situação social delicada. Ela foi aproximando-se da minha mesa, e, educadamente, saudou-me. Sua voz era suave e em baixo tom; era exatamente da forma que pensei que deveria ser. Naquele instante eu finalmente compreendi o significado de ter ‘lágrima na voz’, que tanto era falado pelos cantores. Para minha surpresa ela não veio me falar de um parente acometido por uma doença grave, nem sobre um companheiro que estava preso ou um pai que estava desempregado. Ela apresentou-se como uma pessoa usuária de drogas. Sem cerimônias, me contou que estava naquela vida já há algum tempo. Não sei exatamente o motivo, mas dentro de mim eu não enxergava uma dependente química em minha frente. Trocamos algumas poucas palavras, e no vai e vem do diálogo ela revelou qual sua verdadeira intenção. Disse-me que estava com uma grande vontade de comprar um entorpecente o qual, segundo ela, a faria retornar ao lugar de onde ela nunca deveria ter saído. Todo o sofrimento que aquela jovem passara em sua vida podia ser resumido em seu olhar. Com olhos de um azul tão bonito quanto o encontrado na bandeira de seu país. Foi então que ela assaltou-me. Em um ato de pura covardia, ela me roubara sem demonstrar nenhuma piedade. Mas não é o tipo de delito que costumamos ver por aí. Na verdade, eu tenho muito a agradecê-la por aquele furto. Diferentemente do que o leitor possa está pensando, ela pilhou-me daquele local com palavras recitadas. Eu mesmo, que já aguardava o momento em que ela me pediria dinheiro para suprir seus vícios, fiquei atônito diante da atitude dela. Como quem possuísse toda autoridade, tal qual a autora daqueles versos, ela recitou para mim:
“Toda esta noite o rouxinol chorou,
Gemeu, rezou, gritou perdidamente!
Alma de rouxinol, alma da gente,
Tu és, talvez, alguém que se finou!
Tu és, talvez, um sonho que passou,
Que se fundiu na Dor, suavemente…
Talvez sejas a alma, a alma doente
D’alguém que quis amar e nunca amou!
Toda a noite choraste… e eu chorei
Talvez porque, ao ouvir-te, adivinhei
Que ninguém é mais triste do que nós!
Contaste tanta coisa à noite calma,
Que eu pensei que tu eras a minh’alma
Que chorasse perdida em tua voz!…”*
Por algum instante, eu não estava mais ali. No momento em que recitavas aqueles versos, eu, nada mais era que uma mera estrofe no canto tristonho daquele rouxinol. Talvez aquela noite tenha terminado para mim. Mas não para aquele pequeno pássaro. De certa forma, àquela era verdadeiramente a minha alma – chorando, vagando, morrendo [...]. Não poderia imaginar que aquela figura de semblante calmo e fisionomia delicada, embora aparentasse toda fragilidade do mundo, poderia me atacar com tanta força. Entorpecendo-me com sua poesia. Daquele dia em diante guardo na memória a imagem daquela garota. É impossível, para mim, lembrar aquele momento sem que uma lágrima sorrateira arrisque-se em deslizar na minha face. É como se cada lágrima fosse sua voz sussurrando: toda noite choraste... E eu chorei.
*(Poema: Alma Perdida. Florbela Espanca – Livro de Mágoas)