A cachacinha da salvação
(Meu amigo Antonio)

 

O meu grande amigo Antonio Strano Vieira deixou este mundo no dia 26 de julho de 2011. Poeta desde sempre. Depois, publicitário, jornalista, advogado, professor.

 

Éramos três os de junho do mesmo ano. O Antoninho e o Manfredo do dia 5 e eu do dia 20. Nos aniversários, telefonando para cumprimentá-los, lascava para cada um:

 

- Agora você é o mais velho. Sou um ano mais novo.

 

Quinze dias depois era a vez deles:

 

- Tudo igual!

 

Nos próximos 5 de junho só um telefonema para dar. Um a menos para receber duas semanas depois.

 

Cirurgia de grande porte e risco. Adiada deste o início do ano. Pesquisava e buscava coragem. Consultava médicos diferentes. Repetia exames. Pedia minha opinião. No início da penúltima semana de julho ele me ligou:

 

- Quinta-feira vou para a mesa. Reze pelo seu amigo aqui. Estou confiante. Tranquilo. Só tenho medo de sequelas.

 

- Vai dar tudo certo. Não vou estar na cidade, mas em pensamento estarei com você. Os amigos espirituais, com a permissão de Deus, estarão presentes. Tenha fé, confiança.

 

Na sexta-feira liguei para a Elma, mulher dele. A cirurgia foi um sucesso. UTI de praxe, precaução.

 

- No sábado vai para o apartamento.

 

- Então vou vê-lo na segunda.

 

No início da tarde da segunda-feira gravei um CD para levar de presente. Enfiei 147 sucessos da Billie Holiday, da minha coleção, compactados num único disquinho. Bom para ajudar a passar o longo tempo da recuperação.

 

A americana fazia parte da nossa praia, assim como Frank Sinatra, John Coltrane, Louis Armstrong, Al Hirt, Count Basie e tantos outros, desde quando, ainda adolescentes, queríamos a nossa banda. Ele trompete, eu clarinete e sax tenor. Sonho de piá. Não deu.

 

Com o CD na mão, telefonei para confirmar o apartamento. A Elma atendeu ao celular:

 

- O Antonio voltou hoje para a UTI. O médico não deu esperanças. Quadro muito grave. Estava bem no sábado. Domingo com oscilação de pressão.

 

Larguei o CD. Billie Holliday agora não podia fazer nada. Era esperar a vontade do Pai.

 

Terça-feira cedo o telefone tocou. Atendi com temor da notícia. Não me enganei. Era a Elma:

 

- O Antonio faleceu. Sepultamento hoje mesmo.

 

Lembrei-me da nossa turma da Rua Saldanha Marinho, de quando rapazinhos. Liguei para o Ronaldo. Pedi para avisar o Heitor e o Cláudio - o Heráclito não estava mais entre nós, partiu cedo. Eu mesmo o Edison, dos tempos de Bom Jesus, não da Saldanha:

 

- Você tem de ir. Éramos muito unidos...

 

Velório na Capela Vaticano.

 

- Tem um senhor procurando por você - o Júlio, irmão do Antoninho, veio me contar.

 

Era o Heitor. O Cláudio com ele. Não nos víamos há mais de quarenta anos. Impossível reconhecer. Mas só para mim, que sou ruim nisso. Para eles, não. Identificaram-me de pronto.

 

Hora da despedida, o corpo no palco. O mestre de cerimônia, depois das homenagens, pediu que parentes e amigos subissem para o último adeus de cada um. Na hesitação geral, o Cláudio tomou a dianteira. Eu e o Ronaldo o seguimos. O Heitor, que disse não aguentar despedidas, tinha ido embora.

 

Só nós três com o nosso amigo. Ninguém foi ao palco conosco. Não sei por que, deixaram que ficássemos apenas os quatro. Reparei nisso depois de alguns minutos. Nós, da turminha da Saldanha. O Cláudio tocou carinhosamente as mãos frias do companheiro de tantas festas, alegrias, aventuras. Emocionado, ergui discretamente a mão direita, arremedando o gesto que fazíamos quando nos despedíamos. Balbuciei um até breve. Descemos. Só então os outros subiram.

 

O Edison não estava ali conosco, mas não deixou de ir. De volta, do nosso lugar eu o vi na fila, passando ao lado do caixão. Paramentado de motoqueiro. Depois de velho deu para isso. Jaqueta e calça de couro. Capacete debaixo do braço.

 

Conheci o Strano quando cursávamos o ginásio no Bom Jesus. Gostos comuns e temperamentos parecidos selaram uma amizade que se estendeu por meio século. Muita coisa nós passamos juntos. Aventuras e alguns riscos. Pequenas farras. Altos papos nas madrugadas frias, nas esquinas da Curitiba do Dalton Trevisan. Só dele, não. Nossa também. E aquele diálogo do Shakespeare? De qual peça mesmo? A última do Vinícius, que tal? Ótimo esse filme do Godard. O Oito e Meio do Fellini? Esquisito, mas muito bom. Uma câmera na mão e uma idéia na cabeça do Glauber Rocha. Deus e o Diabo na Terra do Sol...

 

Momentos tensos para assistir ao nosso primeiro filme para maiores de dezoito. E nós com quinze. Tanta mise en scène para driblar o porteiro e conseguir entrar no Cine Palácio e, no fim, ver apenas a bunda da Brigitte Bardot. Em preto e branco e en passant. E ainda pagamos inteira para não ter de mostrar carteirinha de estudante com a data do nascimento.

 

Num sábado de novembro fomos pescar no Rio Barigui, no ponto onde ele entra no Parque Tingui, que ainda não existia. Na época o Strano morava na Rua Fernando Moreira, quase esquina com a Rua Saldanha Marinho, e eu perto do Cemitério Municipal.

 

Logo após o almoço, chegou lá em casa. Escolhi algumas linhas com anzol, peguei a lata com as minhocas que já havia arrancado da terra e nos tocamos a pé pela Rua Desembargador Hugo Simas, subindo até a Cruz do Pilarzinho. Depois, na Raposo Tavares, descendo para o rio. Não levamos caniços. Com uma pequena faca cortei duas taquaras ainda verdes de um taquaral no reflorestamento de eucaliptos dos Mylla, perto do Barigui.

 

O dia estava abafado e, à medida que vencíamos o trajeto, o tempo ia fechando. Mas ansiedade de pescador não tem preço. Com o mundo para desabar, colocamos as linhas com os anzóis iscados na água. Em poucos minutos a chuva chegou.

 

No início tentamos nos abrigar embaixo de algumas árvores, na esperança de que chuva de verão - embora ainda estivéssemos na primavera - passa logo. A chuva virou um aguaceiro, as árvores ficaram encharcadas e já não fazia diferença permanecer ao abrigo delas.

 

Estávamos na margem esquerda do rio, no início de uma estradinha que levava a uma antiga olaria, cuja chaminé ainda hoje é preservada dentro do parque. Resolvemos então procurar refúgio num bar na outra margem, voltando pela estradinha até a Rua Raposo Tavares e dobrando à esquerda para atravessar uma ponte de madeira, onde começava a estrada do Tanguá e do Juruqui - a rua hoje chamada Fredolin Wolf, no sentido Pilarzinho-Santa Felicidade, acabava no rio. Mais cinquenta metros e chegamos ao boteco.

 

A chuva insistia. Nós, molhados e desconfortáveis. Um friozinho incomodando. Veio então a ideia de beber alguma coisa para esquentar. Pedimos um samba (Coca-Cola com cachaça). O bodegueiro perguntou se queríamos com cachaça mesmo ou com conhaque. Cachaça, respondemos.

 

Dividimos aquele samba, sorvendo em pequenos goles. A chuva continuava. Mais forte. Pedimos outro samba. Desta vez com conhaque, para experimentar.

 

A bebida espantou um pouco o frio. Mas, como a chuva não dava trégua, pedimos novamente.

 

- Mais um samba com conhaque. Dois, um para cada um.

 

Guris magrelos de treze ou quatorze anos não acostumados a beber. Aquelas doses já surtiram efeito. Animados, resolvemos ir embora mesmo sob chuva.

 

Voltamos à beira do rio, recolhemos as linhas e pegamos o trecho para casa.

 

Na Cruz do Pilarzinho, entramos no Bar do Polak.

 

- Dois sambas, por favor. Com conhaque.

 

Novamente na estrada.

 

Pouco depois, o Armazém do Ballin, na confluência da Av. Desembargador Hugo Simas com a Rua Cláudio Manoel da Costa, onde hoje há um posto de combustíveis. Cansamos de samba.

 

- Dois conhaques, por favor.

 

- Comum ou de alcatrão?

 

Olhamos um para o outro. De alcatrão? Vamos experimentar?

 

- De alcatrão.

 

Descemos o Schaffer embalados. Nem sentíamos o macadame sob os pés.

 

Os próximos bares eram o do Leopoldo Gumz, do Estefano, do Zonatto, do Tibúrcio, um sem nome, na esquina da Emílio de Menezes, e o do Afonso Bonde. Além do Armazém do Carlos Skroch, em frente ao Bar do Gumz. Mas nesses todos não dava para entrar porque poderiam me reconhecer - o filho do Ernesto, tão novo e pinguço!

 

Fizemos os cerca de dois quilômetros até minha casa sem beber mais nada. O Antoninho ainda teve de continuar a pé até a dele. Pegar ônibus, molhado daquele jeito, não dava.

 

Entrei em casa me esforçando para disfarçar o porre. Procurava andar firme e sem falar, para não ser traído pelo hálito e pela articulação sofrida das palavras. Tudo rodava à minha volta e o estômago começava a dar maus sinais.

 

Enquanto eu prometia a todos os santos nunca mais beber, minha mãe me descobriu e falou apavorada:

 

- Guri, você está ensopado. Vá tomar um banho quente.

 

Obedeci sem abrir a boca e evitando pensar em qualquer bebida alcoólica que fosse, para ver se acalmava o estômago.

Preparando-me para o banho, eis que a minha mãe reapareceu no corredor com um pequeno cálice:

 

- Antes beba esta cachacinha para prevenir resfriado...

 

Eu ia dizer que não queria. Mas na hora percebi que a cachacinha poderia ser a salvação da lavoura. Se aceitasse, qualquer coisa que acontecesse depois já estaria justificada. E o hálito ficaria coerente.

 

Fechei os olhos, pedi perdão aos santos, e bebi mais aquela.


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N. do A. - Na ilustração, Brigitte Bardot em cena do filme La Vérité (França, 1960).

João Carlos Hey
Enviado por João Carlos Hey em 30/12/2011
Reeditado em 06/02/2022
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