_Vida no tempo da vida

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A vida é uma ampulheta.

Ai! Que droga, cortei o dedo – assevera[1] o solitário homem, perplexo, observando o borbotar[2] das gotas de sangue.

E a vida pode ser coágulo do tempo.

A cada segundo, incessantemente, escorre, por entre as paredes estranguladoras do palco do suicídio anunciado, um pouco da areia que nos move para o final do jogo. Um singelo movimento de rotação renovaria as engrenagens e novo jogo se iniciaria? Seria tão simples assim?

Os indivíduos, somos caixas, caixinhas de surpresas – viver é constante surpreender-se consigo e com os outros.

Nas expectativas introjetadas[3] em nosso inconsciente residem todas as razões do decepcionar-se – quando desejamos, sonhamos e projetamos, no outro, nossas imperfeições e medos; ao acreditarmos que nele está o resíduo da nossa incompletude, perdemos a noção de alteridade.

A vida é claustro a nos aprisionar dentro de uma caixa cúbica de arestas inversamente proporcionais ao que aparentamos ser. Na realidade, não somos; aparentamos, para os outros, uma persona revelada ridícula depois.

O sorriso, os cumprimentos e os apertos de mãos nada mais são que convenções de bichos. Somos e estamos fadados a nos arranhar mutuamente, essa é a sina.

Quando o espelho nos afeta, quando o olhar que nos fita os próprios olhos nos desmascara, nada resta além de silhuetas do que éramos – a imagem refletida sempre nos despe, mesmo diante de olhos que evitam a realidade virtual intangível, mas existencial.

O homem, cabisbaixo, retirou o dedo da boca. Desde o momento do corte estava consumindo o sangue que nas pulsações arteriais proporciona o “élan” de viver. O sangue, ao escorrer por dentro da boca, retroalimenta cada parte de nós e revigora a amargura do sutil sopro de vida que somos, queiramos ou não nos achar deuses... Alguns agradecem a Deus por tê-los feito deuses. Quão tolo ainda é o homem.

Minutos depois, o homem ainda sente o calor do sangue, apesar do desequilíbrio instável que teima instalar-se. Demorada coagulação, sofrimento prolongado.

Tempo. Por que se demora em alguns? Por que passa tão depressa para outros. Por que a aparente impassividade[4] nos assola?

Pensativo, o homem se sente pífio[5] grão de areia a descobrir, pelo contraste, a força dos demais que caem incessantemente sobre ele. Sente-se sufocado por cada grãozinho que lhe cai, impertinente, dentro dos olhos. Pelo estrangulamento do óstio, eles caem não apenas pela gravidade, mas empurrados pelo estreito portão que divisa os dois simétricos lados da máquina do tempo... Este seria o estreito caminho que nos conduziria ao Céu?

Não há ampulhetas interligadas – parece-me que a dele foi-lhe genuinamente projetada para o estereótipo.

Ansiamos encontrar nossa reflexo-ampulheta; todavia, as estruturas de vidro quebram com o tempo e dos cristais jogados ao chão pelo impacto, os pedacinhos são o que mais importam e incomodam, pois são eles que ferem e maculam as límpidas faces, outrora enxertadas pelo viço do enamorado encontro. Fruto de despretensioso flerte, as farpas dilaceram almas presas eternamente por vínculo cármico.

Sinto-o sufocado. Os grãos derramados parecem jogá-lo numa densa areia movediça. Os movimentos possuem celeridades diferentes; o corpo está desbotado, dando lugar ao cinza-lodo das excreções sepulcrais que a idade nos faz poder jogar ao chão em volumosas tilintadas[6], sem medo. Ele sente dores nas costas... Deveria expectorar, falar trinta e três?

Chove lá fora. A vida também nos faz verter lágrimas cadentes, claro! Ah, gravidade amiga, mas também inimiga. Leve-nos ao chão, antes de sermos pó!

Um relâmpago. Em instantes, virá o trovão como reflexo das diferenças físicas do aspecto das velocidades. Quanta energia há nessas colididas massas que se tocam depois de ascenderem movidas pela força do calor. Pesadas, caem sobre nós. A chama e o viço pré-histórico da divindade do fogo e da luz estão acessos. Outro relâmpago, este mais forte, de intensa luz. Fiat lux[7]! Tenho medo...

Há um sobressalto. Há choques interiores e o homem precisa respirar. Quer sentir a brisa; tatear o tempo frio, o frescor da noite. Todos os sentidos são importantes. O vulcão aceso por medo dos relampejos, entretanto, precisa arrefecer-se ao toque da mesma natureza que nos banha a vida; que nos consumirá depois da morte. Alguns respingos lhe banham o rosto e as estrelas, tímidas e escondidas, claro que estão lá! As pesadas nuvens são passageiras – molham o solo onde outros seres, antes de nós, sonharam, correram contra o tempo e foram tragados depois que o último grão da ampulheta caiu.

Quem vira o jogo? Quem possui o condão de acabar com esta jogatina, dando a cartada final? Em jogos onde há desenlace de vida pode mesmo haver vencedor? Por que as ampulhetas, por maiores que pareçam, sempre se nos apresentam limitadas, limitadoras e imitadoras do tempo?

Um cabelo, quase imperceptível, cai sobre a folha. Branco. Cabelo branco. Efeito do tempo...

A visão parece turbar. A acuidade dos olhos de águia de outrora dão lugar a imagens desfocadas, relativizadoras da noção espaço-tempo. O homem parece cansado. Nome dele: Marcolo Deusdeth Felisberto Fecundo.

É angustiante percebermos que a travessia de qualquer caminho se finda na metade dele. A partir de então, estaremos saindo, indo embora, dando adeus. Seria maravilhoso se o Paradoxo de Zenão[8] fosse perfeito. Infelizmente, efetividade, onipresença e eternidade são características escondidas, só reveladas quando a ampulheta está de ponta-cabeça.

O ruim da caminhada é o erro de percepção. Afinal, nunca saberemos quando dividir nosso tempo de vida por dois, quatro, oito... – divisões tomadas da menor para a maior fração.

De repente, a escuridão. Choque? Queda de energia? Espasmo momentâneo.

A luz retornou. Os olhares daquele homem de olhos fundos, sequiosos de esperança, conduziram-no ao mundo do tempo, o mesmo que nos espera, cedinho, para dias luta... Até que finalmente, em nossa lápide, alguém, que não nós (parece óbvio), escreverá: game over!

Crato-CE, 4 de abril de 2011.

02h29min

[1] Protesta

[2] Brotar, jorrar

[3] Internalizadas

[4] Indiferença

[5] Desprezível

[6] V.i. Soar (o sino, campainha ou dinheiro): um sino lento tilintava. V.t. Fazer tilintar: o gado tilintava os chocalhos de...

[7] Faça-se a luz!

[8] O paradoxo ilustra o fato de que com ideias aparentemente corretas é possível obter conclusões absurdas, vejamos o que o paradoxo diz: Imagine uma pista em que um determinado corredor disputa uma corrida com uma tartaruga. Nesta pista, o corredor dá uma pequena vantagem para a tartaruga deixando-a largar na frente. pelo paradoxo de Zenão: “O corredor, por mais rápido que seja, nunca pode alcançar a tartaruga; porque na altura em que atinge o ponto donde a tartaruga partiu, ela ter-se-á deslocado para outro ponto; na altura em que alcança esse segundo ponto, ela ter-se-á deslocado de novo; e assim sucessivamente, ad infinitum.”

Nijair Araújo Pinto
Enviado por Nijair Araújo Pinto em 28/12/2011
Reeditado em 22/02/2012
Código do texto: T3410957
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