Os anos não tão verdes
Faz tempo, um colega e eu fomos à casa de uma família, num sítio aqui perto. De há muito, vinham nos convidando. Até que fixaram data: “Tal dia, vamos reunir o povo para fazer rapadura. Vejam se não vão mancar”. Quem vai perdendo a lembrança de um Brasil rural talvez desconheça costumes que funcionavam quase como ritos tribais. Tinham caráter festivo, embora demandassem uma trabalheira danada. Desde os primeiros alvores do dia sobrava serviço, mas tudo virava uma grande diversão. Matar porco ou vaca, fazer pamonha, fazer farinha de mandioca ou rapadura – sempre foram oportunidades de reunião para um bando de parentes ou vizinhos. Para isso a família nos chamou. Lá se ajuntaram algumas dezenas de pessoas ligadas por parentesco e vizinhança de propriedades.
Ao chegar, nos deparamos com um tacho imenso no centro do terreiro, montado sobre uma fornalha capaz de assar o mundo. Cheio até a borda, fervia o caldo da cana esmagada pela moenda, que as mulheres tinham deixado reluzindo de limpeza. Num canto, antes da remoção para lugar conveniente, uma montanha de bagaço dava idéia do volume de serviço, desde o início da manhã ou na tarde anterior.
Para as crianças aquele bulício era uma reinação estranha à normalidade dos seus dias. Moviam-se de um para outro lado, em meio a brincadeiras que só elas inventam. Assim que chegamos, vencida já a parte maior do trabalho, alguns se puseram a conversar conosco. Outros, depois dos cumprimentos, voltaram ao preparo das caixetas para acondicionar os tijolos de rapadura.
De repente, me dei conta do perigo que ameaçava dois meninos. Corriam perseguindo-se um ao outro, em arriscada brincadeira de pega-pega. Quem foi criado na roça conhece histórias de crianças feridas ou mortas em acidentes havidos por descuido dos mais velhos. São tantas as oportunidades, e os garotos, tão levados da breca que, lá um dia, enquanto o anjo da guarda tira um cochilo, a tragédia acontece. Quem sabe, pela distração com nossa chegada, ninguém tivesse percebido o risco a que os pequenos se expunham.
Preocupado, chamei o menor e avisei: “Olhe, querido, vão correr para lá, mais longe; aqui vocês podem se machucar nesse tacho fervendo”. O guri fez cara de amuo, procurou o pai e prestou queixa: “Pai, aquele ‘veinho’ ali ficou brabo comigo”. Eu tinha pouco mais de quarenta anos, apenas me surgiam os primeiros fios brancos na cabeça, mas fui escalado no time dos velhinhos. Ainda hoje o episódio rende piadas.
Para muitos ser chamado de velho é o pior xingamento. Ofende mais que um palavrão. Qualquer injúria se releva, não essa. Nossa cultura aprecia a juventude sarada, a beleza das formas, o desfrute da vida na fase da formosura e do prazer. Mas foge da velhice como o diabo da cruz. Ela é o estuário de todos os males. Verdadeira maldição.
Para quem não conhece mais que aparência deve mesmo ser angustiante sentir o avanço dos anos. Tenho pena de quem se esforça para, de todas as maneiras, disfarçar o tempo vivido. Como se fosse vergonha não ostentar mais os traços nem a disposição dos vinte anos. Uma das indústrias de maior faturamento é a de cosméticos e artigos de beleza. De produtos que escondem os inevitáveis estragos da idade. Milhões são gastos na tentativa de mostrar um verdor que já passou. Na corrida desesperada para, de algum modo, falsear a realidade. Na obstinação de criar uma mentira agradável de ver.
Mas o que é importante mesmo: o que eu sou, ou aquilo que aparento? Será que o valor de alguém não começa pela coragem de admitir a verdade?