Noventa anos
Hoje, dia 28 de dezembro de 2011, meu pai completa noventa anos.
Contemplando seu semblante sereno, fico a pensar se ainda há lembranças atrás de seus olhos, hoje baços e avermelhados, e que outrora foram azuis e luminosos...
Quanta vida houve nesse corpo hoje debilitado e alquebrado, quanta agilidade nas pernas hoje inertes, quanto trabalho nas mãos ora descoordenadas...
E a cabeça? Quanta coisa criou, quantas palavras bonitas escreveu... Quantos planos, quantos sonhos houve que só ele teve conhecimento, quanta preocupação pela família que dele dependia... Quantos desses sonhos terá realizado? Quanta alegria essa família lhe trouxe, fruto de sua dedicação e exemplo?
E o coração... Forte até hoje, quantos trancos agüentou? Só sei que muito amou, de sua maneira altruísta, sem nada pedir a ninguém...
Repasso em minha mente as lembranças que temos em comum. As mais remotas são os passeios pela praça, muitas vezes só nós dois, enquanto minha mãe ficava em casa envolvida com os afazeres domésticos. Fizemos pouca coisa juntos, talvez pelo seu temperamento fechado, sempre voltado para o trabalho, talvez pela falta de interesses em comum. Ele dizia-se corintiano, mas nunca foi um torcedor fanático, e talvez por isso não me passou a paixão pelo esporte. Eu herdei da minha mãe a musicalidade, e ele é a pessoa mais anti-musical que conheço! Mas herdei dele a responsabilidade, a seriedade e a honestidade, principalmente em relação ao trabalho. E com a idade, consegui adquirir um pouco de serenidade, sua marca registrada de sempre... Mas mesmo assim, sempre houve a certeza do apoio, do respaldo, da torcida pelo meu sucesso.
O que mais posso dizer deste homem, hoje mais silencioso que sempre, mas mesmo assim ainda dando exemplo de vida, pois é um doente calmo, que não dá trabalho para as pessoas que cuidam dele, não tem as impertinências que seriam próprias da idade...
Foram noventa anos pautados nos exemplos recebidos e talvez nos sofrimentos vividos, pois foi criado sem mãe, estudou em internato, mas sempre tinha gratas recordações dos tempos passados entre os muros do colégio. Sempre foi grato aos irmãos maristas responsáveis por sua formação moral e cultural e passou para seus filhos o reconhecimento pelos mestres. Ensinou-nos sempre a respeitar os mais velhos, e ser atenciosos com eles, principalmente com os tios e tias, que sempre foram suas referências, já que seu pai vivia na fazenda e sua mãe morrera cedo.
Ele formou três filhos, que por seus exemplos, na maioria silenciosos, tornaram-se profissionais e adultos responsáveis.
Foi, à sua maneira, sempre carinhoso com os que o cercavam, tendo às vezes para cada um, uma palavra jocosa criada por ele: “moleca” para minha mãe, “mutreco” para mim, “maçaroca” para minha irmã, “beleleco” para seu neto... Criava seu próprio vocabulário: nunca dizia “estou duro” quando estava sem dinheiro, mas “estou brenó”...
Neste dia, quero dedicar-lhe todo o meu amor e reconhecimento, e desejar-lhe a paz que sempre mereceu!
Hermes Falleiros