MEMÓRIAS DO CORAÇÃO
Voltei mais uma vez à minha cidade natal, Areia Branca. Dessa vez por um novo caminho que ainda não tinha ido. Por uma cidade que também não conhecia, Grossos, usando uma balsa que iria me dar o prazer de um novo percurso. Apesar de tudo aparentar desconhecido para o meu intelecto, o coração no entanto batia no compasso de quem estava reconhecendo velhos amigos. O rio que corria por baixo dos meus pés levando as folhas mortas ou simplesmente brincalhonas que se deixavam cair dos mangues na correnteza e seguiam saracoteando pelas trilhas fluviais esperando o abraçar salgado das águas tépidas do mar; os cascos de ostras agarrados em velhas madeiras do cais, ressecados pelo sol, tão brancos que parecem um cemitério de túmulos caiados e uniformizados, mostrando a beleza e ao mesmo tempo o perigo a algum incauto que sem saber do seu potencial cortante chegue demasiado perto; as garças do outro lado do rio, damas de branco que desfilam com porte orgulhoso ao lado de seus inúmeros súditos, os chama-marés que acenam com suas potentes garras uma continência ao longo do tapete de lama escura e odorosa que delineiam o caminho; até mesmo o sol, astro que sei ser o mesmo em qualquer lugar que o encontre, ali parece ter outra personalidade e me acolhe como a criança que me viu correr nessas paragens.
A balsa desliza rápida e os pontinhos distantes a cada minuto tomam uma forma mais precisa. Do lado esquerdo o losango branco que faísca em resposta à luz morna do sol poente descortina enfim a grande montanha de sal que velhas barcaças sonolentas se preparam para, no amanhecer do novo dia, levá-la ao imponente porto-ilha e daí para modernos navios que abastecem o mundo. Do lado direito presto atenção a quantidade de barcos parados ao longo do cais, muitos deles deitados para não mais levantar, presto atenção ao ondular do telhado das casas, umas baixas outras altas, interrompidos pelas aberturas das ruas. Entre todas noto a construção mais alta, a igreja de Nossa Senhora da Conceição, a casa da mãe de nosso Senhor que é protetora dos pescadores, daqueles que trabalham embalados pelas ondas do mar, dentre os quais se incluía o meu pai. Portanto, de forma indireta ela é também minha protetora, e mais ainda porque foi lá que fui batizado, que fui incluído nas fileiras dos cristãos, fato que me orgulha até hoje.
Dessa forma, ao pisar em terra firme, é como se tivesse entrado em meu ambiente. Mesmo que eu não veja nenhum rosto conhecido, que as residências não me soem familiar e até a casa que eu nasci não exista mais, em meu coração algo diz: este é seu lar.
Mas tudo não está perdido. Ainda resta uma casinha familiar que resiste à força das intempéries. É o lar da minha tia. Entro com ela e suas duas filhas, uma delas minha esposa, com o intuito de uma vistoria. Sou simplesmente uma testemunha. Não tenho direito de dar opiniões em situação tão... íntima! Mas não posso deixar de sentir, mesmo sendo apenas uma testemunha. Mesmo porque sou testemunha de hoje e também do passado.
Lembro daquela sala de estar que hoje tem pesadas vigas de concreto armado destinadas a uma reforma que nunca chegou e que antes tinha uma cadeira de balanço onde muitas vezes eu ficava a oscilar no compasso do relógio para ocultar o meu nervosismo a esperar por uma de suas filhas que pretendia namorar; no quintal coberto de carrapichos oculta o lugar onde um generoso limoeiro tantas frutas me ofertou e até mesmo os coqueiros gêmeos e hospitaleiros que deixavam que eu repousasse numa rede à sua sombra, não mais os encontrei; dentro de um dos quartos reconheci de imediato aquelas duas camas de solteiro, principalmente a localizada à direita. Enquanto as filhas reclamavam da mãe aquela situação de insalubridade extrema, de livros empoeirados, de madeiras corroídas pelo cupim, de colchões embolorados e irrecuperáveis, vinha à minha mente outra cena. Naquela cama da direita uma menina-moça chorando a recém perda de seu pai. Nós tínhamos acabado de deixá-lo em sua última residência e ela se achava inconsolável. Eu também sofria, um sofrimento talvez mais pungente. Sim, porque a dor que todos sentiam era identificada e a que me consumia somente a mim pertencia. Era a dor da perda de um amigo disso todos sabiam, mas não sabiam que associada a ela estava também a dor de sentir o sofrimento da pessoa amada e disso ninguém sabia. Nem mesmo ela, a pessoa amada! Foi naquela cama que eu a vi deitada de bruços, soluçando. Foi aquela a primeira vez que eu me aproximei dela vencendo a minha ancestral timidez e afaguei os seus cabelos molhados pelas lágrimas. Lembro que aproximei meus lábios do seu ouvido e disse algumas palavras que já não lembro quais foram. Lembro sim, do seu corpo trêmulo sob minhas mãos e a proximidade do meu rosto no seu. Sei que depositei um beijo em seu rosto, mas o tumulto que ia em meu coração impediu que meu cérebro registrasse qualquer detalhe desse momento. Tudo ficou gravado em meu coração onde a morte dos neurônios jamais irá apagar, onde nenhuma palavra de qualquer reforma ortográfica jamais irá traduzir.
Segui-as automaticamente para a saída ouvindo-as criticar repetidamente a mãe: não ajeita a calçada, não conserta a porta, não troca a janela por outra moderna, não joga todo esse lixo fora, não tem nada que preste dentro de casa... Não foi pedida a minha opinião e mesmo se fosse não sei se iria ajudar muito. Diria que encontrei coisas de muito valor nessa visita, mas que não poderia mostrar para elas. Eram memórias e muitas delas inconfessáveis. Estavam todas ali, fresquinhas como se tivessem sido feitas ontem.
Senti então uma forte onda de solidariedade com a resistência nostálgica de minha tia. Certamente ela queria também preservar suas memórias com uma base na realidade, mesmo que isso fosse de encontro a toda lógica capitalista. Talvez seja esse o preço que tenhamos que pagar por nossa modernidade, evolução, erudição... Sacrificar as memórias do coração na coerência do capital.
(feita em 12-04-09)