INOCÊNCIA, IGNORÂNCIA E RESPONSABILIDADE.

“Sonhei que estava descendo uma escada e uma criança de cerca de quatro anos brincava de forma perigosa sobre uma mureta que ficava acima do corrimão por onde eu passava. Em sua inquietação se movia de um lado para outro, muito alegre com o que estava vivenciando no seu mundo íntimo, sem imaginar o risco que estava correndo. A sua cuidadora que aparentava ser uma irmã mais velha estava ao lado, mas não demonstrava nenhuma preocupação com o que poderia acontecer. Permanecia segurando a criança, mas com a atenção voltada para as colegas com as quais conversava animadamente. Eu percebi o perigo e sabia que se aquela criança caísse daquela mureta dentro da escada de granito se machucaria bastante. Seria bom, pensei, para ensinar a sua irmã a ter mais cuidado.

“Logo que acabara de ter esses pensamentos ouvi o som de um corpo caindo. Ainda me voltei a tempo de ver o crânio aberto e deixando a mostra parte do encéfalo que começava a se tingir de vermelho. As pessoas horrorizadas fechavam os olhos com gritos de ajuda, a cuidadora sem qualquer reação estava paralisada no mesmo lugar, apenas com os olhos revirando como se estivesse entrando em profundo transe, da mesma forma que a criança fazia, arriada sobre o cimento bruto próximo aos meus pés. De um momento para outro eu me transformei no responsável direto por aquela criança. Mesmo que eu não tivesse a formação médica que tenho, mas como pessoa adulta e conhecedora das responsabilidades e deveres da vida, eu deveria assumir da mesma forma a condução dos fatos a partir desse momento. Cheguei perto da criança e vi a extensão do estrago. O crânio fora rompido pelo choque da queda, a parte óssea em impacto direto com o cimento havia rompido as tenras amarras cartilaginosas que ligavam as chapas ósseas umas as outras e que formavam a abóbada craniana com flexibilidade para o crescimento como é observado nessa faixa de idade. O rompimento concomitante de artérias que nutrem ou passam por essa região óssea era o responsável pela crescente onda de vermelho que tingia o local e se espalhava pelo chão. Pedi aos gritos a turba enlouquecida acima de mim que me arranjassem uma toalha. Precisava fazer um envoltório protegendo a região afetada o quanto antes, para prevenir infecções e uma maior perda sanguínea. Aparentemente o tecido cerebral não havia sido danificado, porém a sua parte funcional poderia sofrer um dano ainda maior se medidas preventivas não fossem tomadas de imediato. Recebi a toalha e comecei a proteger o crânio desconectado e tingido, ao mesmo tempo que procurava não imprimir muita pressão para que o efeito de conter o sangramento não chegasse até o cérebro e causasse morte por asfixia dos neurônios. Estava pensando que ao concluir o serviço, pegaria a criança nos meus braços e a levaria ao hospital mais próximo. Não me preocuparia com a sua cuidadora, os presentes certamente fariam isso e diriam para onde eu teria ido...”

Foi quando acordei. Ainda sentia a ansiedade, a angústia pela qual também eu estava passando dentro daquele evento onírico. Fiquei a imaginar o que queria dizer esse simbolismo da mente aplicado ao cotidiano real.

No sonho havia uma criança que na sua natural inocência, brincava à beira do precipício, de um perigo iminente que ela não poderia perceber. A sua cuidadora, que deveria ter essa consciência, estava no momento voltada para assuntos mais empolgantes junto com suas amigas. Aquela criança que suas mãos seguravam eram somente um detalhe pequeníssimo da sua vida naquele exato momento. Seus pensamentos viajavam com a história que ouvia, falava e representava com animação. Eu, pessoa mais amadurecida, mais conhecedora dos mecanismos da vida, avaliei num relance todos os riscos que ali existiam. Fiquei até torcendo para que acontecesse algum desastre para dar uma lição naquela cuidadora desleixada. E o desastre aconteceu. De repente eu passei de mero espectador de uma cena para seu protagonista principal. A imensa dimensão da minha mente inconsciente queria me passar um recado através desse simbolismo que eu deveria interpretar. Agora era eu que sentava no banco dos réus posto pela minha própria consciência.

“Não era você o médico que estava dentro daquela cena? A pessoa tão amadurecida com os princípios e filosofia de vida? Porque não chegou perto da cuidadora e chamou a atenção do comportamento irresponsável e dos riscos que existiam? Por que? Por que?”

É interessante esse diálogo. A consciência me chama a atenção, mas eu não sou a minha consciência? Ou então a consciência quer chamar a atenção de outra estrutura que tem responsabilidade pelo meu comportamento, o ego. É uma estrutura que diz mais respeito ao nosso eu biológico, ao corpo físico, aos interesses materiais e que muitas vezes assumem o comando de nossas ações de forma muito autônoma. Depende de nossa maturação espiritual, da energia sutil que é a nossa essência e que coexiste com o nosso corpo em constante processo de evolução.

No momento que eu vi a cena e avaliei os riscos, quem estava no comando era esse lado egóico, biológico, instintivo. Ele passou logo ao julgamento da mocinha que cuidava da criança, como merecedora de uma forte lição. Não julgou que essa lição poderia ser demasiado forte e que traria risco para a sobrevivência de outra pessoa. “Eu” queria dar uma lição para amenizar a ignorância da cuidadora, mas de forma irresponsável não avaliei que a inocência da criança poderia desencadear uma fatalidade. Agora estava correndo em para atenuar um acidente que poderia ser evitado.

Dessa interpretação para a aplicação na vida real é somente mais um passo. Estamos constantemente dentro de cenários que envolvem mil variáveis, inclusive perigos de toda intensidade. As pessoas que estão dentro deles também podem ser classificadas como inocentes, ignorantes e responsáveis. Fica logo claro que as pessoas responsáveis, que implica o domínio de um conhecimento superior, tenham um cuidado todo especial com as duas outras categorias. Devem ensinar a ambas com muito carinho e paciência, os inocentes e principalmente os ignorantes. Estes já têm uma idade suficiente para serem responsáveis, algumas vezes possuem mais idade do que os responsáveis. No entanto, por diversas contingências da vida, individual e coletiva, não conseguiram adquirir conhecimentos amplos que lhes retirassem da ignorância. Algumas vezes adquiriram até muito conhecimento acadêmico, científico, mas não conseguiram fazer uma conexão com os princípios verdadeiramente importantes da vida, a fraternidade, a justiça, o amor. Criam uma espécie de caminho racional de forte conteúdo egoísta e não considera as dores que campeia por esse mundo afora onde cada um de nós somos responsáveis por aliviar um pouco. O importante para os ignorantes está na aquisição de poder material, financeiro, status social. Tudo que ameaçar esses fatores é como uma ameaça a própria vida. Não adquiriu o conhecimento fraterno que está na base da espiritualidade, onde o importante não são os bens materiais que conquistamos e alimentam a fugacidade do corpo e sim os bens morais que elevam o espírito dentro de sua imortalidade. Daí o surgimento de muitos “acidentes” individuais e coletivos que permeia nossa sociedade: a usura, a fome, a corrupção, o ciúme, a intolerância, a hostilidade, o medo, a guerra e tantos outros que ceifam vidas de forma lenta ou rápida, de forma sutil ou ostensiva.

As pessoas responsáveis convivem dentro desse contexto, tudo observam e tudo devem fazer dentro de suas áreas de atuação para disseminar o ensinamento e transformar cada vez mais ignorantes em responsáveis, para atenuar o prejuízo de nossa formação. Sim, porque o lógico é que passemos da fase da inocência para a responsabilidade através de uma formação suficiente. Portanto, este momento é crucial para a transformação do nosso mundo, pois devemos despender esforço duplo, educar os inocentes e principalmente os ignorantes, pois senão eles continuarão mantendo o “status quo” do nosso planeta até uma provável situação de insustentabilidade e caos, como existem previsões nesse sentido.

Essa educação aplicada pelos responsáveis deve ser feita em todos os níveis e de acordo com a área de atuação de cada um. A área política é a que mais tem um potencial de trazer melhores condições de vida a grande número de pessoas. Vejamos o exemplo de Gandhi na Índia. Porém um nível que todos devem participar ativamente é o familiar. Por ser o mais próximo, sempre estamos sendo convocados para dar uma opinião, uma sugestão, uma ação, um exemplo, antes que um acidente se realize. Esse acidente pode ser uma agressão física, verbal, uso de drogas, prostituição, abandono do lar, depressão, suicídio entre outras conseqüências deletérias. Por outro lado pode ser o mais difícil de todos, pois por estar mais perto de nós é o que nos atinge com mais profundidade. Uma orientação quanto a visão deturpada da pessoa mais próxima pode evocar nela sentimentos de revolta com muita agressividade. Então, a própria forma de colocar a questão deve ser feita com muito tato e precisão. Como o responsável não é um elemento neutro na questão, ele passa a sofrer uma série de inquietações com as conseqüências de sua ação instrutiva. Porém ele sabe que não pode aceitar um comportamento que tem certeza que é equivocado. Deve dizer com clareza a sua forma de pensar e se isso lhe trouxer conseqüências emocionais, que sejam entendidas como o preço que estar pagando por não ser indiferente.

Tenho um exemplo dessa questão: meu filho resolveu praticar o surf e eu, mesmo não sendo muito entusiasta dessa sua decisão, por saber que nesse ambiente é favorável o uso de drogas e ele já foi agredido uma vez na beira da praia por um outro grupo de jovens sem nenhuma provocação. No entanto, como sou defensor da liberdade individual, e como ele estava querendo exercitar uma atividade esportiva que visa a habilidade e o contato com a natureza, não fui contra. Inclusive contribui para a compra de uma prancha moderna. Assim, ele passou a praticar o seu surf como queria. Certo dia atendo o telefonema de um amigo espírita dizendo que eu tivesse cuidado com o meu filho, pois ele corria perigo. Ele não sabia precisar muito bem que tipo de perigo era esse, mas tinha a ver com o mar. Que lhe orientasse não ir perto do mar, pelo menos por alguns dias. Na minha linha de aquisição de conhecimentos, aprendi sobre a existência do mundo espiritual, da intercomunicação que existe entre um lado e outro da vida e que existem seres espirituais que protegem a nossa caminhada na terra. Meu filho não tem tanta certeza disso. No entanto, senti que devia chegar perto dele e colocar com toda a veemência a preocupação que eu tinha em minha mente com a sua segurança. Acredito que ele tenha ficado mais assustado com o meu comportamento de quase implorar para ele não ir para a praia, nem mesmo participar de uma corrida que estava sendo prevista pela via costeira. Não conseguia justificar de outra forma, a não ser da minha convicção do mundo espiritual e do qual ele não compartilhava. Dei o recado e na despedida um abraço bem apertado onde meus olhos úmidos destoavam do seu riso maroto, descrente. Ele não foi a praia. Encontrou outros argumentos que se somaram aos meus e não foi. Também o seu interesse pelo surf decresceu. Não o vi mais saindo para o mar com sua prancha. Passou a fazer outras atividades e o tempo passou.

Certo dia sua mãe liga para mim preocupada, pois ele havia caído no colégio onde é professor e havia deslocado o braço. Explicou que o chão estava molhado e ele escorregou. Para não cair tentou se segurar na escada, mas o ombro cedeu e a queda não foi evitada. Agora estava sofrendo muitas dores, tanto no ombro deslocado quanto nos machucados decorrentes de ter rolado a escada e devia ir para o hospital. Foi levado pelo irmão e depois que sai do trabalho fui ao seu encontro. Já havia feito raios-X do local, deixou o braço em uma tipóia e o médico além de uma medicação prescrita deu diversas orientações. “Você já sofreu luxações como essa, então o seu braço não consegue suportar muitos esforços, principalmente de forma súbita como aconteceu. Evite esforços com o braço, esportes como futebol, natação e fez a ênfase: não entre no mar em águas profundas, é muito perigoso”. De repente veio em minha mente a advertência do médium: peça ao seu filho que não se aproxime do mar, ele corre perigo. Era a ligação que naquele momento eu não atinei em fazer. Um deslocamento do ombro na tentativa de agarrar uma prancha, em águas profundas onde o surfista fica à espera da onda boa, poderia ser fatal. Não sei se naquele dia eu cheguei a agradecer à mensagem que recebera. Mas neste dia eu o fiz. Percebi a dimensão do acidente que poderia se realizar se não fosse essa advertência. A responsabilidade que eu adquirira com meus conhecimentos tinha dado condições de eu prevenir acidentes, mesmo que racionalmente eu não conseguisse explicar os detalhes. A ignorância do meu filho nesse campo talvez tenha sido atenuada, quem sabe? O que importa é que nesse caso eu fiz o meu papel. Não considerei os meus títulos acadêmicos que não justificariam de forma científica os cuidados que eu pedia. Não tive cuidado na expressão dos meus sentimentos, em evitar as lágrimas que teimavam em seguir os cuidados que eu implorava. Procurei cumprir a responsabilidade que naquele momento eu estava investido para evitar acidentes.

Dessa forma a vida nos oferece sempre momentos onde temos oportunidade de exercer nossa responsabilidade. Que nos custe algum preço, como ironia, raiva, até mesmo agressividade, não devemos nos intimidar. A covardia não combina com a sabedoria que o exercício da responsabilidade a cada dia nos preenche.

Sióstio de Lapa
Enviado por Sióstio de Lapa em 28/12/2011
Código do texto: T3410032
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