A CASA DE PEDRA

Era um dia chuvoso. Acordei com um frio gostoso que me fez procurar aconchego na cama entre minha companheira e o meu filho, o pequeno Lapa, nome carinhoso que gostamos de trocar um com o outro. Como tínhamos combinado no dia anterior, logo nos preparamos para fazer um passeio em algum lugar na intimidade da natureza. Procurando nos recortes de jornais uma sugestão de roteiro, encontrei uma reportagem sobre uma das pedras mais antigas da América Latina, localizada na cidade de Serra Caiada, município distante apenas 71 kilometros de Natal, cidade onde moramos. Concordamos em visitar tão ilustre pedra, praticamente nossa vizinha, e no caminho apanhamos minha prima Mônica que combinara ir conosco. Embalados ao som de Raul Seixas pegamos a estrada às 09:30 horas, já devidamente aquecida pelo sol generoso que vencera as persistentes nuvens chuvosas que castigam nossa cidade.

Ao passarmos por Cajazeira, distrito de Macaíba, fomos obrigados a parar intimados pelo gostoso cheiro de café fresquinho que inundava a estrada. A simpática senhora que nos atendeu logo nos mostrou os inúmeros dotes que possuía. Enquanto veio nos atender à mesa mostrando verbalmente o cardápio do dia, anotou na sua memória nosso variado pedido: uma fatia de bolo de ovos, uma fatia de queixo de coalho assado, uma porção de cuscuz com frango guisado e um refrigerante para o pequeno Lapa; uma porção de cuscuz com carneiro guisado, um pão francês, uma tapioca e café, para minha prima; uma porção de cuscuz com frango guisado, um pão francês, uma tapioca e café para minha companheira; e para mim uma porção de cuscuz com carneiro guisado, uma tapioca, uma fatia de bolo de ovos, um pão francês, café e leite. Como ninguém é perfeito ela esqueceu a minha fatia de bolo e pecou na sincronicidade da entrega dos pedidos. Enquanto chegou a porção do cuscuz com o acompanhamento salgado, o café com o pão e tapioca só veio 15 minutos depois, nos deixando indefesos com a fome e frente ao pitéu ao nosso alcance. A conseqüência foi cumprirmos nossa missão gastronômica em dois tempos – ninguém resistiu à espera. Também não posso deixar de citar sua ótima audição, pois enquanto comentávamos com o pequeno Lapa a possibilidade dele pedir um suco, eis que o mesmo aporta na mesa quase instantaneamente. O beiço do pequeno Lapa logo cresceu visivelmente mostrando sua contrariedade na expectativa de perder o refrigerante, bebida de sua preferência, apesar de toda nossa bateria contrária. Mas como o dia devia ser de lazer, de alegria, não seria isso que iria nos frustrar. Acatamos o suco que terminei por tomar e mantivemos o pedido do refrigerante, que fez o milagre de rapidamente desmanchar o beiço do pequeno Lapa. Resolvidas todas as questões, a fome devidamente derrotada, compramos ainda um saco de pinhas suculentas para futuro deleite e pegamos a estrada de volta ao nosso destino.

Com mais 20 minutos de viagem chegamos à cidade de Serra Caiada onde o frentista do único posto de gasolina do local nos indicou gentilmente como chegar à pedra que queríamos. Entramos na avenida principal e logo encontramos uma singela pracinha recém construída nos convidando para bater as primeiras fotos. Entusiasmados, todos fizemos fotos uns dos outros, com exceção do pequeno Lapa, que não fazia questão de ocultar sua contrariedade em estar participando da viagem, pois sempre prefere ficar em casa operando o seu computador nos mais diferentes jogos, sozinho ou acompanhado. Mas, procurando sempre incentivar atividades mais interessantes, mostramos a importância do contato com a Natureza e de conhecer a história e recursos naturais, principalmente da região ao nosso alcance. No caminho encontramos ainda a igreja de Nossa Senhora da Conceição, possível padroeira da cidade. Estava vazia no momento. Entramos respeitosos e tiramos mais uma bateria de fotografias em todos os principais ângulos. Notei uma leve insatisfação em minha prima que posara para uma bela fotografia em frente à igreja e o fotógrafo inadvertidamente cortou a cruz que coroava a bela construção superior em forma de arco. Mas, dando demonstrações de que também sabe controlar as frustrações, embarcou conosco novamente com alegria em busca da pedra. Perguntando aqui, acolá, chegamos a uma estrada de barro que ia na direção que queríamos. Preocupados com algumas poças no início da estrada que se perdia nas curvas, perguntamos a um rapaz nativo que pedalava sua bicicleta se estávamos no caminho certo e se era possível chegar até lá com o carro. Nos respondeu que sim, e que no local tinha uma fazenda cujo morador chamava-se Zé do Doce e que nos orientaria melhor. Agradecemos e seguimos em frente, parando algumas vezes para colher plantas e tirar mais fotografias.

Finalmente chegamos à fazenda dos dois umbuzeiros onde morava o Zé do Doce. Chegamos ao portão e uma senhora veio nos receber. Falamos do nosso objetivo e ela chamou o seu marido, o Zé do Doce. Esse chegou solícito, porém de olhos amortecidos pelos efeitos pacíficos da cachacinha que ele diariamente ingere. Após dividir conosco um pouquinho da marvarda com o seu hálito carregado, se candidatou a ser nosso guia até a Casa de Pedra, uma formação rochosa que ficava próximo à Serra Caiada, a pedra que procurávamos. Seguíamos o Zé em fila indiana após passar por baixo do arame farpado que separava o território dos aprendizes de latifundiários da região. Cambaleante mas mostrando interesse ia nos falando do cotidiano da sua vida, do seu patrão que estava preso por ter assassinado uma pessoa, da outra estrada que era cheia de urtiga, do touro que estava pastando há uns 200 metros e que não gostava de vermelho, deixando minha prima preocupada com sua blusa escarlate. No transcurso o Zé ainda deu uma vacilada errando o caminho, mas se recuperou logo em seguida, conseguindo nos deixar a salvo na Casa de Pedra. Realmente era uma obra da Natureza imponente. Apesar de ser apenas um centésimo da sua irmã, a Serra Caiada, onde muitas pessoas encontraram a morte tentando o alpinismo em suas encostas, a Casa de Pedra chegava a impressionar por sua estrutura granítica se jogando no espaço como a desafiar a gravidade e deixando um perfeito abrigo em sua base, o que justificava o seu nome. Satisfeito o Zé tudo mostrava como um perfeito anfitrião, cujo pecado fora beber todas sem esperar os convidados. Convidado a posar conosco em uma foto, mostrou um certo charme pedindo para terminar o seu cigarro de palha que com mãos trêmulas estava terminando. Olhamos a pedra imponente mais à frente e ainda ensaiamos, eu e minha companheira, a irmos até sua base, mas desistimos devido a advertência do Zé da existência de cobras no trajeto. Não sei se verdade ou era apenas uma desculpa para não nos acompanhar num trajeto que seria muito mais difícil para suas atuais condições físicas. Mas na dúvida, preferimos não arriscar e procuramos formar outra coluna indiana de volta.

Ainda fomos olhar a plantação de hortaliças do Zé e a turma provou da água de chuva da sua esposa Vera. Mas era chegada a hora do retorno. Agradecemos e gratificamos a colaboração do Zé em nossa aventura e voltamos para casa. Antes paramos ainda no aparente único restaurante da cidade para o almoço. Dessa vez a sede era maior que a fome e antes dos pratos chegarem já tínhamos esvaziado uns dois litros de refrigerante. A chegada do bode, da galinha e do frango não fez tanto furor quanto fez pela manhã. Estávamos encharcados de refrigerante e agora só queríamos chegar em casa e nos preparar para mais um dia de trabalho e escola.

(Produzido em Natal-RN em 29-06-05)

Sióstio de Lapa
Enviado por Sióstio de Lapa em 27/12/2011
Reeditado em 28/12/2011
Código do texto: T3409006
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2011. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.