Cadê o gato?

CADÊ O GATO ?

Seu Nicolau era excelente profissional de uma empresa renomada da cidade. Homem sério, respeitado não só pelos seus cabelos brancos que tão bem emoldurava o seu rosto, mas pela sua integridade, responsabilidade e profissionalismo.

A sua sala na repartição tinha um ar de imponência, apesar da velha estrutura do prédio. Teto de carnaúba, piso de tábua corrida, móveis do século XVIII. Mesas pesadas que mal se conseguia abrir uma gaveta mesmo vazia e estante tão alta que ninguém chegava a última prateleira sem ajuda de um banquinho.

Seu Nicolau jamais faltava ao trabalho. Primeiro porque não adoecia. Criado no interior bem alimentado tinha uma saúde de ferro. Depois porque o trabalho era prioridade e nenhum compromisso por mais importante que fosse deixaria suas obrigações com a repartição para segundo plano.

Ademais, não poderia se separar de Vavá. Vavá era seu gatinho de estimação. Criado na repartição para espantar os ratos que faziam visagem atrás dos armários e desfilavam pelas carnaúbas do teto com muito garbo e poder. Pensavam que estavam fazendo favor em repartir aquele casarão com a empresa. Audácia de ratos!

Foi o Vavá que pôs fim a essa arrogância. Chegando lá magrinho, desnutrido e sem muita expressão, mostrou que as aparências enganam. Na calada da noite acabou com a festa da rataria. Em pouco tempo Vavá engordou. Seu pelo preto parecia veludo. Seus olhos cintilavam na noite. Um dourado ofuscante que clareava o salão na escuridão noturna. Ao amanhecer, esperava seu Nicolau deitado na poltrona azul estufada onde o chefe passava o dia despachando, resolvendo problemas e decidindo o rumo da empresa. Ao ver o patrão se aproximando corria ao seu encontro e passava o seu rabo na calça preta deixando seus pelos, como se tivesse desejando “um bom dia”. Seu gesto de carinho era correspondido com afagos e tapinhas na cabeça. O Vavá era parte da empresa e seu Nicolau tinha por ele muito afeto.

Seu Nicolau não tirava férias e nem folgas. Nos domingos inventava trabalho. Na verdade queria mesmo era os carinhos de Vavá e alimentá-lo com sua comida proferida: Bofe. Levava todos os dias quatrocentos gramas de bofe para seu adorado gatinho. A família do patrão implicava com tanta assiduidade e amor à empresa. Queriam fazer uma viagem. Será que depois de mais de trinta anos de trabalho seu Nicolau não merecia umas férias? Por insistência da família e não havendo mais desculpas foi obrigado a “sofrer” as benditas férias impostas pela família. Viajariam para um lugar distante. Assim, o assíduo profissional teria que cortar o cordão umbilical pelo menos por certo tempo.

Nessa noite em reunião familiar ficou decidido dia, hora, local e tudo sobre a viagem. Seu Nicolau não dormiu. Quando já na madrugada cochilou sonhou que de volta das férias encontrava seu “bichano” estirado no chão. Morto por falta de comida, de água e de carinho. Levantou-se atordoado e dirigiu-se para repartição sem nem mesmo tomar café.

Sentando-se na cadeira apertou a buzina e três serviçais imediatamente chegaram para atendê-lo. Procurem o Cireneu. Quero falar com ele urgente. Cireneu era zelador da empresa. Magro, amarelo, lerdo, arrastava-se ao invés de andar. Se não fosse compadre do patrão já tinha perdido o emprego há anos. Tirando o boné perguntou humildemente:

- O patrão me chamou?

- Sim. Chamei. Escute bem o que vou lhe dizer Cireneu. Amanhã estou viajando. Vou passar dois meses fora. Vou deixar Vavá sobre sua responsabilidade.

- Pode deixar patrão, cuidarei bem dele.

Pegando o bichinho que roçava suas pernas embaixo da cadeira, colocou sobre a mesa e disse:

- Veja Cireneu, como ele está gordo e bonito. Quero encontrá-lo do mesmo jeito quando voltar.

Metendo a mão no bolso tirou certa importância que dava para alimentá-lo pelos sessenta dias. E continuou explicando:

- Olhe, ele come quatrocentos gramas de bofe por dia. Todas as manhãs você terá que trazer sua comida. Veja como ele está pesado.

Colocando na balança viram que o sortudo animalzinho estava com quase dois quilos.

Depois de muita conversa e recomendação, Nicolau partiu com o coração apertado de saudades do amigo bicho. Na viagem pouco se divertiu. Foi mesmo para agradar a família. Sempre preocupado com a empresa. Vavá fazia parte de empresa, portanto, estava incluído nessas preocupações. Dois meses pareciam não acabar nunca. Mas, finalmente chegou o grande dia. Férias acabadas.

Não via a hora de amanhecer. Seu terno preto já estava pendurado no armador com toda indumentária para reiniciar seu dia de trabalho.

Chegando à repartição estranhou quando foi recebido por um gato magro, esquelético que se contava as costelas. Mas pelo alisar do rabo não tinha dúvida era o Vavá. Seu miado era mais de fome do que de boas vindas. Notou logo de cara que a empresa estava toda atrapalhada com sua ausência. Saindo de sua postura de homem educado berrou em tom agressivo. Cireneeeeeeuuuuuu. E este apareceu um pouco mais gordinho e corado de quanto o deixara.

- Cireneu traga a balança.

Colocando o bichano em cima da balança viu que ele tinha emagrecido consideravelmente.

E perguntou irritado.

- Cireneu aqui não está o bofe. Cadê meu gato?

Maria Dilma Ponte de Brito
Enviado por Maria Dilma Ponte de Brito em 09/01/2007
Reeditado em 24/05/2020
Código do texto: T340855
Classificação de conteúdo: seguro