LIÇÕES DO MAR
Acordei cedo no domingo e olhei o horizonte por sobre os telhados. O céu de azul claro, servia de tela de fundo para o desfile de nuvens airosas e brincalhonas que formavam esculturas intricadas num momento para logo em seguida transformar em outras. Os pássaros, sempre madrugadores, já cortavam o espaço com muita velocidade, como se estivessem brincando com a lentidão das nuvens acima. Um sentimento de forte interação com a natureza penetrou todo o meu ser. Logo veio o desejo de ir até o mar, o meu grande amigo que em tantas ocasiões ouviu os meus lamentos, os meus sonhos e muitas vezes me aconselhava. Vesti o calção de banho e cheguei até ele. Pisei na areia úmida da praia e tive um pouco de sensação de culpa. Por que não convidei os meus filhos para estarem agora comigo desfrutando dessa beleza tão natural?
Resolvi fazer meus exercícios costumeiros, principalmente a corrida. Tirei a camisa e amarrei na cintura para que a luz do sol conseguisse me banhar de forma mais direta. Enquanto corria, deixava também correr meus pensamentos. Lembrei que na próxima semana vai haver uma corrida e caminhada promovida pela Prefeitura e que a inscrição é até hoje. Posso me inscrever para a corrida. São dez quilômetros, é muito para mim, mas já corri uma vez no Campus Universitário esse mesmo percurso e com um pouquinho de treino eu poderei fazer novamente o trajeto. Fiquei pensando que poderia levar uma camisa com os dizeres, na frente DEUS É NOSSO PAI e atrás JESUS É NOSSO MESTRE. Enquanto eu corria intercalava a cada 150 passadas um exercício parado de abrir os braços e as pernas simultaneamente, afastando-as lateralmente da linha média do corpo durante 10 vezes e na próxima vez estendia os braços e as pernas para frente e para trás como se estivesse caminhando na forma de pulos, também por 10 vezes. Imaginava que poderia fazer da mesma forma na corrida, essa intercessão de pulos dessas duas maneiras, mesmo que isso implicasse em maior esforço físico. Caso alguém quisesse saber por que eu corria sem essa alternância de pulos, eu diria que estava homenageando Deus quando pulava de braços abertos na lateral, agradecendo pela vida que Ele me concedeu e pelas energias com as quais ele me alimenta o corpo e alma. Quando pulava na forma de caminhada, estava homenageando Jesus que nos trouxe lições importantes para o melhor cumprimento de nossa jornada evolutiva. Imaginava que isso poderia sensibilizar as pessoas que estavam assistindo e cada vez que eu pulava com uma dessas posições, elas gritariam em uníssono: DEUS É NOSSO PAI ou JESUS É NOSSO MESTRE. Seria importante para elevar a espiritualidade de nossa gente. Eu estaria protagonizando uma educação em massa, mesmo que fosse de forma automática. Imaginava que depois da corrida eu poderia ser entrevistado onde poderia explicar todas essas argumentações. Poderia ser indagado por que eu, um profissional com titulação universitária de doutor, expõe publicamente que Deus é nosso pai, quando isso não tem nenhuma confirmação pela academia. Então eu poderia dizer que existe muita gente neste mundo que não sabe quem são seus pais biológicos. Mas eles sabem que tiveram duas pessoas que participaram de sua geração. A sua própria existência é uma prova disso, pois não existe nenhum ser vivo neste mundo que tenha se originado sem a participação dos pais ou pai. Isso é uma avaliação imediata, do mundo eminente, do que estamos vendo, provando, medindo, comprovando materialmente. Quando a avaliação se estende no tempo que chega a ultrapassar a capacidade de nosso raciocínio, vemos que a existência de pais biológicos não é suficiente para explicar a vida. Esses mesmos pais devem ter tido uma espécie de Pai que os construiu ao longo dos tempos. Sou forçado a admitir que não existe um efeito sem uma causa. Como a vida é um efeito que podemos observar, então uma causa deve existir. A minha inteligência não consegue e talvez nunca conseguirá fazer essa identificação perfeita do Pai. Devo me contentar em preencher esse vazio intelectual com uma proposta racional. Devo dar um nome a essa causa primária das coisas e dos viventes: Deus. Vejamos só que conceituação interessante. Deus passa a ser um nome para denominar a minha ignorância, a minha incapacidade de O conhecer com mais profundidade e assim poder melhor lhe caracterizar. Como os efeitos que vejo são inteligentes, então a causa é a inteligência maior. Então sou obrigado a assumir minha incompetência cognitiva, intelectiva de alcançar entidade tão ampla e profunda. Posso negá-lO, simplesmente, não existe, eu não o vejo, não pego, não peso... Quando eu faço assim eu estou circulando com o pensamento ao meu redor, da eminência das coisas. Eu não permito que o pensamento entre na transcendência, naquilo que está além dos meus sentidos. É uma forma de pensar que cada um tem o direito de escolher de acordo com as conclusões racionais que chegou.
Quanto a Jesus ser nosso mestre, depende da escola filosófica que qualquer um deva pertencer. Como escolhi a escola cristã e dentro dela Jesus é o mestre que nos ensina a melhor forma de condução na vida, fica assim justificado. Isso não implica que outros mestres e outras escolas filosóficas não devam existir. Claro que existem e com mestres de alta competência moral. Depende de cada um escolher de acordo com suas preferências intelectuais, espirituais e circunstâncias de vida. No entanto, todos eles apontam para a importância dessa causa primária das coisas, de um Deus cujo nome pode receber diversas construções.
Vou divagando com esses pensamentos enquanto meu corpo segue no automático da corrida. Fico a pensar quantos ensinamentos estão sendo transmitidos nesta visita ao mar e vou procurar organizar cada um deles.
BOM DIA
Enquanto continuo correr no físico entra agora outra linha de pensamentos. A comunicação interpessoal. Tenho dificuldades de relacionamento com pessoas estranhas. Tenho uma personalidade introvertida e minha tendência é ficar isolada, incomunicável. No entanto sei da importância que existe nessa comunicação humana, mesmo com desconhecidos. Assim fiquei a me policiar para fazer a comunicação em cada pessoa que passasse por mim, caminhado ou correndo ou simplesmente sentado na areia.
Não é uma coisa fácil de fazer, pelo menos para os introvertidos. Vem logo um pensamento de que estou sendo inconveniente, de que estou perturbando a outra pessoa. Mas reavalio e digo que quando fazem isso comigo, me cumprimentam mesmo não sabendo quem eu sou, me sinto bem. Então, seguindo a orientação do Evangelho de fazer ao outro o que gostaria que fizessem com você, fiquei autorizado internamente para cumprimentar. Inicialmente saia de forma tímida, apenas um ligeiro levantar de mão ao cruzar com o outro. Também eu tinha que cronometrar. A pessoa devia estar olhando para mim e assim poder responder. Quando acontecia de eu cumprimentar e não receber de volta o cumprimento, vinha logo uma frustração, de que a pessoa não havia gostado. Mas eu voltava a me colocar no lugar do outro e lembrava que muitas vezes eu também não respondia ao cumprimento que me faziam, não é por não ter gostado, era por me sentir incompetente para o fazer. Como eu iria responder? Com um gesto? Uma palavra? Um sorriso? Então a pessoa terminava por ir e eu sem responder. Voltava então a cumprimentar tentando desculpar dessa forma aqueles que viam o meu gesto com a mão e nada faziam.
Uma outra dificuldade que surgiu foi com as mulheres. Assumiu aqui outro elemento de inibição. Será que elas irão pensar que eu estou lhes seduzindo, assediando? Elas também não colaboravam, pois geralmente cruzavam de cabeça baixa. Como a minha comunicação era de forma gestual, com um aceno de mão, não tinha jeito.
Esse era outro problema. Como fazer a comunicação de forma mais eficaz? Com o aceno de mão como eu estava fazendo ou com uma palavra como um bom dia? Acredito que a palavra tenha um maior afeto em sua mensagem, mas o aceno é muito mais prático. Mesmo assim, mesmo com a comunicação gestual, recebia algumas vezes de volta um cumprimento verbal: bom dia.
Não terminei o exercício do dia com uma boa performance na arte de comunicar com estranhos, mas reconheço que avancei bastante.
BANHO E SEDUÇÃO
Depois de ter corrido 6.000 passadas com 40 exercícios parados intermitentes, dei uma parada em frente a um filete de água profunda o suficiente para me molhar acima dos joelhos, que corria ao lado de um bloco de pedras evitando o contato direto das ondas com a areia da praia. Fiquei apenas de sunga, coloquei a camisa e o calção sobre uma das pedras que estavam logo em frente e com um bom acesso para chegar até lá, evitando as pedras submersas que poderiam causar acidentes ou abrigar peixes peçonhentos, e mergulhei na água fria. Foi uma sensação gostosa, o contato dessa água com o meu corpo quente e cansado da corrida. Fiquei um pouco dentro d’água, submergindo ou deixando o corpo boiar ao sabor da correnteza. Levantei e fui para a areia fazer exercícios. Logo percebi que chegaram duas moças e ficaram a me observar e fazendo risos de forma sedutora. Eram pessoas bem jovens e não encontrei atributos para alimentar esse tipo de corte. Continuei impassível nos meus exercícios. Sei que o meu corpo está bem conservado e acima da média de resistência física para minha idade. Sei também que gosto de fazer o jogo da sedução, dos olhares cúmplices. Mas essa duas garotas não provocaram esse desejo e mesmo porque eu estava muito absorvido nos meus pensamentos e procurando a cada momento entender o que o mar queria me ensinar nesse período que eu estava ao seu lado.
Vejo que a cada momento quem prevalece na minha mente é o desejo de crescimento espiritual, comparado ao desejo de evolução material, incluído aí tanto a questão financeira quanto erótica sensual. Ajuda isso a queda hormonal que já está acontecendo e que leva a dificuldades na potência sexual que fica a cada ano mais pronunciada. Sei que existem remédios para atenuar ou mesmo evitar esse efeito. Chego até mesmo a receber diversas amostras que os propagandistas deixam em meu consultório. Nunca fiquei tentado a usar nenhum deles, mesmo já sendo vítimas de falhas sexuais que acontecem cada vez com mais freqüência. Acho que devo seguir o fluxo da Natureza que opera em mim. Essa potência sexual era útil para que eu contribuísse na evolução biológica que se processa continuamente. Já cumpri esse papel e o que resta agora é somente desfrutar do prazer que essa atividade traz sem preocupações de gerar filhos. Gerei o suficiente para atender as minhas necessidades e as necessidades de minhas parceiras. Daqui para frente, enquanto existir alguma capacidade funcional, será feita exclusivamente para alcançar o prazer. Isso implica que as jovens que se aproximarem de mim com intuito sexual, devem ser advertidas de que um objetivo de procriar natural de quase todas as mulheres, comigo é mais difícil. Tanto pela parte de que a mulher que gerar um filho comigo deve assumir o peso de o criar sozinha, pois já tenho uma companheira. Por outro lado, a potencia sexual é um outro fator natural que também é impeditivo. Da mesma forma, quanto o desejo acender na minha mente, em vista de qualquer mulher que se apresenta, devo logo ir dizendo as características do que ela vai encontrar, para não se sentir enganada no decorrer do tempo. Caso queira minha companhia e intimidades, deve saber desses detalhes, fisiológico e social. Da minha parte afetiva, não coloco obstáculos caso o desejo seja despertado e aceito por nós dois. Enquanto a relação trouxer maiores benefícios emocionais que prejuízos, ela será mantida do meu ponto de vista.
A PEDRA
Depois do exercício volto para o banho de mar. As garotas notaram que eu não seria envolvido com seus salamaleques e ficaram a conversar entre si. Não percebi nenhuma tentativa de me envolver nos seus gracejos a partir daí. Quando estou perto de sair da água, e fazer novamente um trajeto de corrida de 3000 passadas antes de voltar para casa, sinto minha mão tocar algo duro enterrado um pouco abaixo na areia. Não sei o que é, mas decido levar comigo antes de olhar e considerar como mais uma lição do mar. Pensei que era um búzio, uma concha, uma pedra polida pelo constante vai-e-vem da correnteza sobre sua superfície. Era uma pedra áspera, de aparência comum, coberta por algo rugoso como corpos de pequenos seres aquáticos que deixaram sua casca calcárea presa a ela.
Imaginei que isso poderia ser visto como um paralelo de nossas vidas dentro de uma panorâmica geral onde o imanente e o transcendente pudessem ser notados. A pedra inerte recebe restos calcáreos de corpos que um dia tiveram vida. Hoje essas vidas dentro dos restos calcáreos não mais existem, mas existe a pedra que também é formada por esses diversos restos. Assim é nossa vida. Um dia nosso corpo não mais existirá, mas permanecerá no universo a nossa existência com aquilo que adquirimos ao longo da vida material. Essa experiência será acoplada a uma energia própria (a pedra), que ao longo da existência irá recebendo mais e mais experiências de vidas que forem sendo vividas, de corpos que vão, de experiências que ficam. Essa energia própria ficará cada vez mais sutilizada até que um dia não necessitarei mais voltar à vida material, pois minha vida energética chegou a um nível de perfeição que posso ficar adido à própria estrutura do Criador e assim participar da evolução do próprio Universo na criação de mundos e seres, materiais e espirituais, na transformação e angelização das energias com nova incorporação na inteligência divina e assim por diante ao longo das eras, pela eternidade.
Olhei ao redor e vi quanto diversificada era a Natureza ao meu redor, inclusive dos seres humanos que compartilham comigo esta experiência de vida. Seres de todos os tamanhos, idades e pensamentos. Quem naquele momento estaria pensando igual a mim? Talvez eu fosse o único. Uma criança corria com alegria, rindo com um colega e os seus pensamento certamente seria para a bola que chutavam um para o outro. Já os seus pais sentados um pouco mais atrás poderiam ter uma infinidade de pensamentos a partir dos cuidados que deveriam ter com os filhos até preocupações com o trabalho, com a sobrevivência. Aquele grupo de jovens bem mais a distância que conversavam quando eu passei por eles, coisas da igreja, de instrumentos que eram necessários, de pessoas que deviam participar. Mais próximo e vindo em minha direção uma pessoa já idosa com uma cesta pendurada no braço, olhava ao redor para ver se encontrava possíveis clientes enquanto anunciava que levava deliciosos espetinhos de camarão. As duas jovens que continuavam conversando animadamente, agora com certeza não me tinham mais no pensamento, talvez falassem agora sobre uma festa, sobre um namorado, uma igreja. Assim eu poderia imaginar uma grande série de pensamentos, todos mais apropriados para eles do que os meus que iam em busca de razões filosóficas para a existência. Com certeza nenhum deles estava pensando na realidade de que daqui a 100 anos nenhum de nossos corpos existiriam com vida, desde as crianças e principalmente os velhos. Ficariam na terra apenas os nossos ossos como pegadas de nossas existências. Quem estaria preocupado para onde iríamos depois dessa vida material já ter sido concluída? O que iríamos fazer com as experiências adquiridas? Que iríamos juntar tudo isso numa espécie de pedra energética e burilar com a ajuda do tempo? Não, com certeza pensamentos desse tipo deveriam ser muito raros e deveriam estar na cabeça de pessoas mais idosas, caso não tivesse a sua vida desviada em algum momento pela força das drogas ou da própria sobrevivência.
Resolvi que já era hora de sair e fazer a última corrida antes de pegar o veículo de volta para casa.
O CACHORRINHO
Logo que comecei a correr vi bem a minha frente um homem com o seu cachorrinho. Brincava com ele na beira da praia, correndo para a frente e para trás, incentivando-o para entrar na água. Notei que na contagem das passadas eu iria para perto deles para dar os pulos intermitentes. Será que ele iria ficar brabo e querer me atacar? Mas ele demonstrava tanta alegria perto do dono que esse temor eu afastei. Dei os pulos previstos enquanto o seu dono entrava no mar e ficava lhe chamando para junto dele. O cãozinho não tinha coragem, tentava ir um pouquinho e logo recuava para a beira das ondas. Terminei os meus pulos e recomecei a carreira. O cãozinho na sua dúvida de entrar ou não na água, onde via somente a voz e a cabeça do seu dono, preferiu me seguir na corrida como lembrou que estava fazendo com o seu dono. Ouvi o seu dono lhe chamar à distância, mas ele não dava o menor indício de que iria lhe atender. Continuava a correr na minha frente, me olhando com alegria. Percebi que ele iria me seguir e ficar cada vez mais distante da voz do seu dono. Estava interagindo com a minha corrida e com o meu olhar de alegria que eu também dava para ele. Resolvi então dar meia volta na minha corrida e interromper a contagem que eu fazia mentalmente. Não sabia o seu nome, por isso fiz um sinal sonoro para que ele também desse meia volta e me acompanhasse. O dono continuava a lhe chamar, mas continuava dentro d’água. Quando o cãozinho embalou a carreira na minha frente em direção ao seu dono, eu imaginei que deveria voltar, pois ele deveria sintonizar com o dono e continuar em direção a ele. Engano meu. Logo que o cãozinho percebeu que eu tinha voltado a fazer a corrida na outra direção e ele não podia perceber o seu dono na totalidade, decidiu voltar a me acompanhar. Tomou mais uma vez a dianteira na corrida que eu fazia se afastando do seu dono. Este ficava a gritar cada vez com mais energia, mas isso não o demovia de correr junto comigo. Um outro homem que vinha caminhando em sentido contrário percebeu a situação e tentou ajudar o dono do cãozinho abrindo os braços acima de sua cabeça e tentando lhe assustar para ele voltar. O cãozinho de forma corajosa não deixou se intimidar. Enfrentou o estranho com postura de ataque e latidos, sem considerar a desproporção de tamanho entre um e outro. Notei que a coisa não estava boa e mais uma vez dei meia volta e chamei o cãozinho que já conhecia a minha voz para correr comigo. Ele aceitou o convite e deixou o estranho para trás tomando mais uma vez a minha dianteira. Dessa vez procurei correr até bem próximo do dono que já estava saindo do mar, reconhecendo que daquela forma o cãozinho não poderia lhe atender. Dei novamente meia volta seguindo o meu destino. Passei pelo homem que tentara assustar o cãozinho e trocamos um olhar e riso de cumplicidade. Virei a cabeça mais adiante e vi os três a se confraternizarem, o cãozinho, o dono e o homem que assustava e agora pedia reconciliação com afagos que o cãozinho sem ressentimentos aceitava.
Notei que foi esse momento mais uma lição que o mar me oferecia. Existem situações que parecem perigosas e não temos coragem de sozinho assumir o perigo. Lembro da minha filha que temia entrar dentro d’água e ficava na beira das ondas como aquele cãozinho. Por mais que eu lhe chamasse ela não tinha coragem de entrar. Era necessário eu lhe garantir que era seguro, que eu estava ao seu lado para evitar qualquer tipo de acidente, que nós iríamos nos divertir mergulhando nas ondas. Mesmo assim ela não encontrou coragem para vir até onde eu estava. Foi necessário eu ir até onde ela estava e a pegar pela mão até um local que ela poderia ficar de pé sem nenhum risco. Depois ela aceitou me seguir para um local onde somente eu tinha o controle devido a minha altura. Pudemos brincar com as ondas e o medo foi embora gradativamente. No final ela era quem não queria mais sair de dentro do mar. A cada convite que eu fazia sempre ela encontrava uma outra onda que se aproximava para nós mergulharmos juntos. Saimos juntos do mar elogiando a brincadeira que fizemos com as ondas e que poderíamos passar ali o resto do dia. Assim poderia ter sido com aquele cãozinho. Caso o dono tivesse ficado com ele um pouquinho à beira mar e brincando com a água, logo ele estaria no ponto de lhe acompanhar para qualquer lugar. Como isso não aconteceu ele ficou se sentindo desamparado à beira-mar. Como a primeira pessoa que passou com sinais de interagir com ele com alegria de uma corrida fui eu, ele me acompanhou. Assim poderia ser com um ser humano. Sentindo-se desamparado de alguma forma, pode acompanhar uma outra pessoa que passa ao seu lado e oferece prazeres imediatos que pode ser algo útil, mas que pode ser algo destrutivo como drogas. Tentei fazer o cãozinho voltar para junto do dono, mas mais uma vez ele não sentiu segurança e voltou a me seguir sem saber que destino poderia ser o seu. Novamente ficou a mensagem. Devemos oferecer segurança para aqueles que estão sob nossos cuidados. A idéia de produzir uma mudança de comportamento com base na violência, na ameaça, no medo, pode ter efeitos contrários, gerar ainda mais hostilidade sem conseguir o objetivo de mudança de direção no comportamento. Foi o que aconteceu com o homem que tentou ajudar espantando o cãozinho. Apesar do seu tamanho ele estava disposto a enfrentar uma briga que se acontecesse ele deveria levar a pior. Foi necessária uma nova tentativa de aproximar o cãozinho do seu dono, que dessa vez como ele saiu do mar lhe deu maior confiança. O homem que antes tentou assustar, agora vendo o seu objetivo alcançado, tentou fazer amizade com o cãozinho que antes se mostrou hostil. O cãozinho por sua vez, notando a mudança de atitude e tendo ao lado a segurança do seu dono, mostrou sua boa personalidade e aceitou o “pedido de desculpas” aceitando ser acariciado e balançando o rabinho.
Finalmente empreendi a carreira de volta e pensava que as lições já haviam terminado, mas faltava ainda uma.
A DUCHA
Já estava bastante cansado e decidi voltar pelo calçadão. Logo na frente encontrei o pessoal da Urbana que estava limpando o calçadão. Usava uma mangueira com jato forte de água para tirar as sujeiras retidas entre as pedras irregulares do calçamento. Logo o meu corpo cansado e suado desejou ser banhado por aquela ducha improvisada. Perguntei ao rapaz se a água que ele estava usando era doce e se ele podia jogar um pouco sobre mim. Ele não fez nenhuma objeção e recebi aquele jato refrescante por um momento muito agradável. Saí dali e pensei em lhe recompensar comprando uma água de coco que estava sendo vendido logo à frente. Mas lembrei que não estava com dinheiro. Tinha deixado o dinheiro que havia trazido dentro do carro que se encontrava bem mais à frente. Continuei a caminhar, mas com a idéia persistente de que deveria recompensar o rapaz que dentro do seu trabalho não se incomodou em atender uma pessoa desconhecida em algo que podia ser somente um capricho, tomar uma ducha de um carro pipa. Da mesma forma que ele me fez esse favor, eu agora reconhecido devia lhe agradecer com algo mais substancioso que um simples obrigado. Ele com certeza não esperava uma outra forma de agradecimento e nisso está a beleza dos ensinamentos cristãos: fazer o bem sem olhar a quem. Já próximo do carro encontrei um carrinho de caldo de cana e pedi para encher um vasilhame de dois litros para levar, seria minha alimentação básica neste dia em que continuo em jejum desde a sexta feira. Pedi para preencher também uma garrafa para dar ao rapaz da ducha. O caldo de cana nesta hora não tinha ninguém, mas enquanto eu fui pegar o carro e voltei, quando cheguei o caldo estava arrodeado de clientes. Muitos estavam alcoolizados e abraçados com mulheres com as quais tinham passado a noite. Enquanto eu esperava ser atendido, ouvia o diálogo que eles faziam. Elogiavam o efeito do caldo de cana comparado com a água de coco. A mulher reclamava que o companheiro não queria uma mulher e sim uma empregada. Fazia essas reclamações abraçados um ao outro com o olhar enviesado de quem está sob forte efeitos do álcool. São esses desvios que a vida nos coloca. Esse casal embriagado, que já tinham por volta dos 40 anos, estavam envoltos na luta pela sobrevivência, cada um com uma estratégia diferente onde o ponto em comum era o interesse sexual. Como essas pessoas poderiam pensar mais tarde em coisas transcendentais se até esse momento estavam totalmente envolvidos em questões materiais, instintivas e por cima ainda com o efeito de drogas que fazem o seu efeito desinibidor a custa da própria morte dos neurônios? Finalmente recebi meus dois recipientes com o caldo de cana e deixei aquela turba envolvidos em seus desejos e necessidades. Parei mais adiante e fui entregar a garrafa de caldo para o rapaz da ducha. Ele recebeu com um olhar perplexo e notei que ele me acompanhava com o olhar. Quando entrei no carro vi a sua mão se elevar em resposta à minha num agradecimento mútuo. Pensei nas lições de São Francisco de Assis. É dando que se recebe. É uma lição que pode ser deturpada pelos ignorantes da vida maior. Podemos ver essa deturpação de forma explícita na atuação de alguns de nossos parlamentares, quando alegam que darão alguma coisa se tiverem a garantia de algo devem receber em troca. Isso se traduz assim: eu lhe dou uns óculos, uma dentadura, uma cesta básica e você me dar o seu voto; eu lhe dou um contrato para fazer uma escola, um hospital, uma obra pública qualquer e você me dar determinada porcentagem. Não importa que você tire essa porcentagem no preço super-faturando a obra, pois quem irá pagar é o suor do povo que não estar aqui para saber ou fiscalizar. Essa a forma deles aplicar a lição de São Francisco, totalmente equivocada com aquilo que o grande mestre quis ensinar. Essas pessoas continuam na ignorância do verdadeiro saber, continuam ofuscadas pelo brilho das coisas materiais e esquecem ou não querem aprender o real significado.
Então, esta última experiência não foi bem uma lição que o mar me ofereceu. Foi mais um teste de aplicação de conhecimentos. Será que ele vai fazer o que se espera dele? Acredito que o mar tenha perguntado a si mesmo. Confesso que ao perceber que não tinha dinheiro comigo, não me via obrigado a ter que assumir algum tipo de culpa. Quantas coisas boas nós fazemos ao nosso redor e não somos recompensados, às vezes nem reconhecidos? Foi quando eu tive a oportunidade de comprar o caldo de cana que veio a minha mente que era a oportunidade que eu tinha da recompensa. Não fiquei de forma compulsiva pensando em ter que recompensar, mesmo porque não existia esse compromisso. Mas se a oportunidade surgisse eu não poderia me omitir. E foi isso que aconteceu. Acredito que eu tenha passado no teste, fiquei satisfeito com o mar e ele comigo. Fui embora levando na lembrança o sorriso do rapaz, no rosto a sensação da brisa fria do mar acompanhada pela orquestra sinfônica das diversas ondas a quebrar.