A última viagem de meu pai

Na época nossa família vivia uma situação difícil, dada a precariedade de caráter financeiro pela qual passava o chefe da família. Meu pai fora descendo na escala social de forma gradativa desde os tempos em que, como ferreiro, fora dono de uma pequena oficina de conserto de implementos agrícolas, na cidade de Junqueirópolis e na qual mantinha um empregado. Ele vendeu a oficina e mudamos para Marília, uma cidade bem maior, onde, com o dinheiro da venda, adquiriu um pequeno bar. O bar, porém, não deu certo, dado que ele não tinha as qualidades necessárias a um bom comerciante. Após um certo tempo em que ficou sem trabalhar, durante o qual possivelmente exauriu os recursos da venda do bar, a situação se complicou, trazendo uma justa preocupação da minha pobre mãe, que tentava fazer o que podia finalizando em casa a costura de camisas para uma loja da cidade, recebendo pelo serviço uma remuneração miserável.

Com isso, meu pai, engolindo talvez o próprio orgulho, resolveu trabalhar como ferreiro empregado numa grande oficina da cidade, que tinha como um dos sócios irmãos um amigo que fizera na época do bar, que lhe propôs o emprego. Após trabalhar por alguns anos na oficina, uma briga entre os sócios irmãos fez com que a sociedade se desfizesse e assumisse a direção da empresa o filho do irmão mais velho, o qual, por não ter trabalhado na oficina, não tinha nenhuma experiência no ramo. Sem os sócios irmãos, a empresa caminhava para uma degradação administrativa cada vez maior e meu pai deve ter percebido isso. Não tenho certeza, mas possivelmente os salários devem ter começado a atrasar para os empregados.

A minha família era constituída de meus pais, eu e três irmãs. Minha irmã mais velha já se casara e morava em São Paulo. Minha irmã caçula, ainda na pré-adolescência, apenas estudava. Por sorte, nessa época eu e minha irmã do meio já trabalhávamos e ajudávamos a família com nossos pequenos salários. Eu ganhava o equivalente a pouco mais de um salário mínimo trabalhando como balconista numa loja de ferragens da cidade. Minha irmã do meio trabalhava num salão de beleza onde começava a aprender o ofício que acabou abraçando por toda a vida.

Lembro-me de que, como jovem de uns vinte anos, eu não tinha muitos gastos pessoais, visto que não era de comprar roupas caras ou de ir a baladas e festas. Já por essa época tinha um espírito de poupança com os recursos duramente adquiridos, talvez motivado pela situação de penúria por que via a família passar. Pelo que me lembro,

todo o salário, que naquela época era pago em dinheiro vivo, entregava para a minha mãe, que dele retirava o necessário para a família e o resto depositava no banco para mim. Parece que o mesmo acontecia com a minhã irmã do meio.

Com a situação difícil pela qual passava a empresa em que meu pai trabalhava, este não tinha razões para estar feliz, visto que um novo desemprego talvez o levasse a uma derrocada pessoal sem volta.

Parece que na sua mocidade ele viajava às vezes para São Paulo e gostava muito de fazer essas viagens, o que fizera com que conhecesse a capital na palma da mão. Há muito tempo que ele não visitava a capital que parecia amar.

Uma noite cheguei em casa com o salário do mês no bolso, pronto para entregá-lo à minha mãe, que estava à mesa conversando com meu pai. Minha mãe chamou-me, antes que eu lhe entregasse o dinheiro, e disse-me que precisava falar algo para mim. Disse-me então que o pai queria muito viajar para São Paulo junto com ela, apenas por diversão. Mas os recursos eram poucos, não havia dinheiro sobrando para isso, disse-me.

Pelo que me lembro, foi então que minha irmã do meio chegou e, por incrível que possa parecer, ela também trazia o salário do mês dela.

Peguei meu salário, entreguei para minha mãe e disse-lhe que com ele e com o salário da minha irmã, eles fizessem a viagem.

Da observação que meu pai fez à minha proposta lembro-me apenas disso: "Vocês cresceram realmente". Não sei exatamente o que ele quis dizer com o "crescimento" que tivemos, mas talvez nele estivesse implícito, além do aspecto físico, também o espiritual.

Ainda bem que meu pai aceitou sem nenhum constrangimento a proposta. Eles viajaram, assim, com nossos salários, para São Paulo. Segundo minha mãe me contou depois, nunca ela andou tanto num só dia. Meu pai quis visitar vários lugares que conhecera de outras épocas.

Pouco tempo depois dessa viagem, a empresa em que meu pai trabalhava, envolta no mar de problemas e dívidas em que havia mergulhado, mudou-se para a cidade vizinha de Oriente, na qual o novo administrador esperava, com a ajuda do meu pai, único remanescente dos antigos profissionais, reerguer a empresa.

Seu objetivo frustrou-se, no entanto, com a morte súbita e inesperada do meu pai, que uma manhã foi vitimado por uma trombose cerebral (um coágulo sanguíneo que sobe pelas artérias até o cérebro).

Não me sai da cabeça que sua morte deveu-se primordialmente

ao desgosto com o rumo que a empresa tomara, tendo talvez um conflito de consciência por ser obrigado a permanecer na empresa da qual o amigo sócio que o empregara havia se desligado devido ao litígio familiar com o novo administrador.

Assim, aquela última viagem prazerosa que meu pai tivera com minha mãe passou a configurar-se para mim como uma viagem premonitária. Por que, numa situação difícil, de grande conflito interno e dificuldades financeiras, um pai engole o próprio orgulho e aceita sem pestanejar a ajuda dos filhos para fazer uma viagem prazerosa?

Empregamos o que ganhamos, ou seja, nossos salários (no caso de sermos empregados), das formas mais diversas. Podemos usá-los para nossa subsistência física ou empregá-los para nosso prazer, gastando-os em festas, diversões ou objetos de desejo, ou podemos poupá-los para nossa segurança futura, ou podemos dirigi-los para algum fim humanitário. Cada um de nós dará ao gasto com seu salário uma importância variável de acordo com o proveito que ele proporcionou, seja a nós ou a outros.

Analisando em retrospectiva a verdadeira dimensão do proveito que aquele suado salário proporcionou, sinto que este foi provavelmente o mais bem empregado salário em toda a minha vida.

Paulo Tadao Nagata
Enviado por Paulo Tadao Nagata em 26/12/2011
Reeditado em 12/01/2023
Código do texto: T3407532
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