2011 Motivos Para Querer Morrer [3]

Eu precisava de um tênis novo, e estava disposto a pagar o preço de um Adidas que me foderia o orçamento de recém-demitido. Na internet custava menos, mas eu precisava pra ontem, e fui com um amigo até o centro do bairro safado que moro - uma imitação fidedigna (quando o assunto é gente feia e sem educação) ao inferno do Brás. Foi no fim de 2010, e tudo estava demasiadamente cheio.

Chegamos à surf/skate shop e ficamos diante da vitrine. Lá estava o pisante que eu queria. Eu não sou de ligar pra coisas supérfluas e caras, mas quando eu quero algo, eu quero MESMO, e não há preço/tirocínio que me impeça de ter - por mais que as conseqüências possam ser desastrosas. Elas sempre são, aliás. Também não fico de frescura: entro, provo, pago, e saio.

Pois bem.

O vendedor simpático veio ter conosco e perguntou se estávamos procurando algo. Apontei o modelo:

- Esse Adidas Campus Mid aí, tem o 40?

Ele disse que sim, e fez a gentileza de nos convidar pra entrar e "dar uma olhadinha".

Perguntei o preço, e ele ignorou a pergunta, e disse pra ficarmos à vontade que ele subiria até o estoque pra pegar. Eu insisti na pergunta.

- Tá trinta reais mais caro que no site que eu quase comprei. Rola um desconto?

Ele disfarçou, insistindo que era melhor eu dar uma provadinha, pra ver se era isso mesmo que eu queria, que depois conversaríamos sobre o preço. Assenti e ele subiu uma escada mambembe e desapareceu.

Voltou dali alguns minutos com um modelo do Mark Gonzales e um do Silas Baxter-Neal.

Começou a falar dos atributos de cada um dos modelos, enquanto eu mantinha uma carranca de desinteresse. Encontrei uma brecha na ladainha e falei:

- Eu pedi igual ao da vitrine.

- Ah, é verdade, vou lá pegar.

Grunhi, sentei num banquinho e, bem, já que estava ali, resolvi provar os modelos que ele trouxe de enxerido. Nenhum dos dois ficou bem no meu pé.

Veio com três caixas e as colocou diante de mim.

- Olha, trouxe esses aí pra você dar uma olhada enquanto eu vou aqui na nossa outra loja procurar o que você pediu, porque ele tá em falta aqui, cara.

Investi nas caixas: um tênis de marca nacional vagabunda e desprezível; um outro modelo do Mark Gonzales, de cores berrantes, e um modelo do Busenitz recém lançado. Provei os dois últimos, e definitivamente nenhum me atraiu.

Ele entrou na loja correndo com uma caixa na mão, com um sorrisão.

- Achei!

Abri a caixa: lá estava. Já senti a palpitação no coração pelo gasto; um misto de amargor e doçúra por estar prestes a saciar um desejo momentâneo que se tornará um opróbrio.

- Esse tênis é dois números maior que meu pé, véi - falei.

- Não, mas é assim mesmo, ficou à pampa e...

- BOM, vou procurar em outra loja e...

- NÃO, agüenta mais cinco minutinhos? CERTEZA que tem ele aqui!

Assenti.

Subiu a escada de mãos abanando e voltou com quatro caixas da Adidas. Eu e meu amigo trocamos um olhar e uma risadinha abafada de desgosto.

Depois de abrir todas as caixas e provar todos os tênis com ares de dúvida entre quase todos - dando esperanças ao atrapalhado vendedor -, simplesmente falei:

- Eu não pedi nenhum desses modelos... É uma pena, eu pretendia pagar à vista. É que vou viajar - menti - e tenho certa urgência, não posso esperar a entrega do site que te falei.

Vi o cidadão fazendo cara de choro.

- Mas você não gosta de outra marca?

- Gosto, claro. Por quê?

- Porque a gente tem várias aqui: DC, Adio, Vibe.

- Percebi... E?

- Ah...

- Sei! Olha, quais os DC que vocês têm?

Estávamos há quase meia hora nesse impasse, e decidi prolongar.

- Tem o do Alex Carolino? Aquele do café e tal? - Perguntei.

Ele correu até a outra loja e voltou com um Dyrdek.

- Caralho! - Falei, ao colocar os dois nos pés e dar uma olhada no espelho.

- Lôco, hein? - Sorriu-me um vitorioso vendedor.

- Quanto? - Perguntei.

Ele respondeu.

- Mas isso é uma nota de cem A MAIS do que eu pretendia pagar pelo Adidas...

- Ah, mas é que a DC.

Já sentei e fui colocando meu tênis velho. Dei uma olhada em todas as caixas que ele trouxera até mim; mais de uma dúzia.

E eu fui tão preciso no que queria...

Saímos de lá com um clássico "vou dar uma voltinha, qualquer coisa dou uma passada aí de novo" e abandonamos o fulano com cara de desânimo ao olhar a bagunça que teria de arrumar.

Entramos em outra loja e acabei desistindo do Adidas e me contentando com um tênis de marca nacional; preto, básico, solado bom, e que ficou certinho no meu pé. O único impasse nessa loja foi o vendedor sabendo menos que eu de qualquer coisa que eu perguntasse e dando uma de louco, depois de ter informado ao caixa um valor diferente do que havia mencionado pra mim.

O que um acontecimento de fins de 2010 tem a ver com um motivo para querer morrer em 2011?

Essa minha aquisição só foi por mim utilizada no segundo semestre de 2011 - e mesmo assim com muito sacrifício e dor. A coisa misteriosamente ENCOLHEU tanto no pé direito que ganhei carne viva no calcanhar e uma unha muito que da encravada e purulenta no dedão, tendo que viver de modo sofrível nas longas caminhadas que meu cargo de faz-tudo-inclusive-ser-office-boy carecia.

E eu não estava pedindo muito pra Deus...

26/12/2011 - 12h00m

Rafael P Abreu
Enviado por Rafael P Abreu em 26/12/2011
Reeditado em 26/12/2011
Código do texto: T3407153
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