A mulher e as crianças

O ônibus aguardava o sinal da estação. O único lugar vago era ao lado da senhora gorda. Mulher de lábios untados de batom vermelho, cílios postiços e um forte azul nas pálpebras. Vestido apertado de bolinhas poderia ser o primeiro sinal de hipocondria. Pedi licença e procurei ajustar meu corpo magro e macilento no estreito banco azul de napa.

Atrás ficava o guarda citadino voltando cansado do seu turno. Ao lado dele um padre calado lendo o jornal do dia. Dentro do veículo temi que a criança vomitasse antes da chegada. Logo alguém tossiu severamente. Uma criança aproximou-se do padre perguntando-lhe se podia ali mesmo dizer a extrema unção. O padre riu. Riso miúdo. Sopitou tapinhas na cabeça da criança, e retornou ao jornal do dia. Do fundo do ônibus uma voz roufenha falou em Cáscara Sagrada.

Quase uníssono o motorista gritou a partida do ônibus bem mais para o fumante tragando encostado no poste. O cobrador elevou a voz: vamos, José Sene Ferreira. Fiquei sabendo sem querer o nome do camarada. Impregnado do nome. Fosse moça bonita e alguém dissesse “Melissa” estaria até hoje na alma mastigando balas coloridas de goma, não era. Vamos parar no inferno com esse senhor José Ferreira. Sujeito barbado irresponsável e fumante. Que tenho com isso? A cena recebeu um componente de memória retentiva por evitar a partida. Desgraçado.

A menina retornou ao padre, batendo na sua perna com a caneta vazada de cor vermelha, imprimindo na batina preta nódoas infernais de esferográfica.

O soldado riu exclamando: ora, filha preste atenção aos pontais da beira da Lagoa Mirim. Sugeriu ao sacerdote a extrema unção, apontando para a irmã, no fundo do ônibus.

Mal contive a gargalhada que contagiou a tripulação. Decerto fixei o tal senhor José Sene Ferreira pelo fato da erva-sene ser potencialmente auxiliar na prisão de ventre. Como se tivesse lido minha cabeça, a passageira franzina desceu no Posto de Gasolina, falando que o reconhecido chá era o habeas corpus do intestino. Tudo ocorria na linha reta da estrada de balastro. A senhora ao meu lado revelou com voz sussurrada; para não afetar o padre que dormia: “cáscara sagrada” é eficaz para constipações intestinais. Supimpa. Houve um tranco e novas tosses ininterruptas. Era demais ceder espaço a mulher obesa com o propósito de servir colherada de guaco para todos no veículo. Foi o que ela fez. Quase me obrigou a tomar uma colherada tão insistente era. Seguiria dez quilômetros de viagem e estava farta de múltiplas expectorações. Nem reparou na criança morta nos braços da mãe, passageira da poltrona verde napa número vinte e oito.

Tércio Ricardo Kneip
Enviado por Tércio Ricardo Kneip em 23/12/2011
Reeditado em 22/06/2020
Código do texto: T3403295
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