CRÔNICA DE UM ALUNO ESPIRITUALISTA
Primeiro devo conceituar o que seja aluno espiritualista. É aquele que adquiriu a consciência do mundo espiritual, da sua existência concomitante com o mundo material; que sabe também da prevalência hierárquica daquele sobre este, e procura aprender as leis e a filosofia do mundo espiritual e a aplicar no mundo material. Dessa forma adquire os créditos para a evolução, principalmente no campo moral. A diferença básica nos dois planos de vida reside na densidade de seus elementos constitutivos que quanto maior mais próximo da matéria, quanto menor mais próximo do espírito.
Assim, eu me encontrava em determinado fim de semana em cidade da região do Seridó no Rio Grande do Norte. Era dia de feira e após o trabalho que fui realizar, por volta do meio dia, circulava entre os feirantes e seus fregueses, e tentava fazer a comparação do que eu via com o objeto do meu estudo. Percebia logo que nem 10% do contingente humano que fervilhava naquele espaço de sobrevivência não tinham uma idéia clara e racional do mundo espiritual. A maioria até freqüenta algum tipo de culto, de missa, de sermão, de palestra religiosa, mas prevalece a idéia de um salvador que por sacrifício trouxe a salvação para aqueles que nele crêem. Nenhuma preocupação com a reforma íntima de seus defeitos e vícios através do esforço pessoal.
Dessa forma eu me considero como um aluno que saiu desse abecedário preliminar onde se encontra a maioria e estou capacitado a ler os primeiros livros, receber os conselhos e lições mais complexas, no entanto, ainda a nível primário. No meio dessa massa rude e ignorante dessa realidade da vida, devo praticar alguns itens de minhas lições: humildade, paciência, tolerância, solidariedade... São lições que pelo exercício já não me trazem grandes dificuldades. Pessoas sujas, bêbadas, agressivas, maltrapilhas, todas são vistas com olhos caridosos e compreensíveis. Não faço nenhum julgamento a priori de nenhum deles, apenas faço algumas indagações internas, do que eu poderia fazer para ajudar na evolução de coletividade que também é minha e de onde todos são meus irmãos.
Se eu tenho um comportamento nessa área que pode ser considerado positivo pela espiritualidade, em outra área a coisa não é assim tão pacífica. Diz respeito a nutrição. Recebi lições de mestre da espiritualidade que devemos ter o maior cuidado com o que ingerimos, pois é assim que nosso espírito interage com a matéria na manutenção da vida do nosso veículo corporal. Quanto maior a implicação de nosso alimento com essa densidade material, quanto maior a implicação de uma inteligência racional ou até mesmo sentimental dos seres vivos que ingerimos, menor a adequação desse alimento à evolução fluídica de nosso corpo e elevação moral do nosso espírito.
Já sentia os apelos da fome em minha mente. Observava as carnes cruas, vermelhas, sanguinolentas, expostas nas bancas de madeira e aquilo já não me apetecia. Não as imaginava transformadas em bife suculento ou enfiadas assadas num espeto. Eu poderia até voltar para casa sem almoçar, afinal tenho experiência de ficar até três dias sem me alimentar. Mas o desejo do meu corpo por alimentação me fez entrar no primeiro self-service. Nessa luta íntima considero ter perdido o primeiro round.
Ao entrar no restaurante de preço único, observei que das 15 opções de carne existentes eu só poderia usar 3, caso evitasse as carnes vermelhas, de mamíferos, como é o meu propósito nessa fase do estudo. Mesmo assim assumi o prejuízo e peguei o prato. Perdi o 2º round.
Depois de colocar no prato o básico feijão com arroz e verduras, fiquei de frente a todas as opções de carnes e assados: picanha, lombo, maminha, costela de porco, de vaca, de carneiro, cupim, coração de boi, bisteca de porco, salsichas... agora a carne não me trazia asco e sim desejo. Sentia a saliva se formando na boca ao imaginar aqueles petiscos sendo triturados entre os dentes e a fumaça a espicaçar minha vontade. Veio à mente as lições do mestre Ramatis e de suas lições no livro Fisiologia da Alma; veio à mente também às criticas dos meus colegas de estudo à contundência do mestre espiritual. Queria até que os argumentos deles prevalecessem e liberassem à minha consciência. Mas foi a contundência de Ramatis que conquistou a vitória no direcionamento da minha vontade. Minha consciência alegava que eu já tinha o conhecimento para passar nas provas dessa lição, só dependia de mim. Fiz a escolha de evitar as carnes vermelhas. Ganhei este terceiro round.
Coloquei apenas as três opções liberadas por minha consciência: peixe, galinha torrada e salsicha de frango. Enchi o prato ao máximo e comi tudo com apetite voraz. Também sei que devo ser comedido com a quantidade. Perdi o quarto e último round. Fui nocauteado.
No caminho de volta para Natal escrevi esta crônica, para lembrar com mais eficiência os meus deveres de estudante; que no próximo embate que houver nesse campo que eu consiga pelo menos um empate, que evite ser nocauteado.