O fim e o começo dos casamentos
Lúcio Alves de Barros*
(Em homenagem a Sandra Durães que me chamou atenção para as fases do casório)
Fim e início de ano são sempre melancólicos, mesmo para os que dizem que gostam destas palhaçadas de bolas, papai Noel, CDs, músicas natalinas, novenas amigos e inimigos ocultos. A própria companhia fica difícil quando vem a hora da solitude da vida. É inevitável a presença manifesta do desespero e a latente da angústia. É a vida em sua inteireza a revelar a fragilidade do corpo e das emoções. E dezembro é isso, um mês tenso, cheio de preocupações onde as pessoas querem resolver a vida que não se desenvolveu em 11 meses. É um caos. Coisa de ser humano
Um fenômeno curioso que acontece ostensivamente neste mês é como os casais se encontram e se separam com certa "naturalidade”. É neste mês que as pessoas desejam assassinar outras no inconsciente e continuar com uma "diferente" que vai fazer a mesma coisa e talvez produzir sofrimento do mesmo jeito no ano que se aproxima. A questão é que seres humanos querem resolver tudo, desde as contas até as emoções em poucos dias. É claro que tudo não passa de uma grande representação que talvez seja mesmo as condições dessa porca humanidade. E não existe outra relação que nos ajude mais a explicar isso do que o casamento. E, pelo que percebo os casais não suportam o que os mais antigos chamam de “fases” do casamento. Nada científico caminho cambaleando no senso comum, até porque acho que ele nos ajuda muito mais do que os grandes e pequenos tratados sobre esse famigerado "amor".
Em geral, os casais vivem uma relação que pode ser dividida em seis partes. Por falta de linhas vou direto ao assunto e ao conteúdo de cada uma delas. A primeira fase é a do tesão, da pura excitação, do gozo e do desejo desenfreado. É a fase na qual a mulher ou o homem (adolescentes, jovens e adultos) sentem aquela vontade de estar sempre junto. Hormônios à flor da pele fazem parte deste cenário. Os beijos saem aos montes, "é um pega dali e acolá" que ninguém aguenta ficar por perto. É uma fase que dura meses e, geralmente, unifica os casais levando-os a pensar na possibilidade de um grande e vigoroso relacionamento.
O relacionamento, aquele em que a pessoa diz, “seguramos na mão e seguimos para todo mundo ver" trata-se de um momento encantado. Esta fase talvez possa receber o nome de paixão. Os beijos continuam. A mulher se sente a azeitona da empada e o homem a única manga que restou na árvore depois da chuva. A paixão como é cega leva o casal a se achar o centro do universo, o mais bonito da paróquia e é nesse momento que a mulher começa a se vestir como princesa e o homem esquece que não passa de um sapo. As mãos outrora errantes se pegam com força e na certa as coisas vão se resolver na cama, no carro, em quatro paredes, atrás de árvores ou - para os mais sofisticados - no motel.
Resolvida a paixão vem o denominado amor, essa invenção de muitos séculos atrás que hoje recebe novas tintas do mercado. E é neste momento que os casais se acham mais bonitos ainda, andam juntos de mãos encarceradas pelas ruas da cidade, fazem planos, tiram fotos, participam de redes sociais, vão em festas e pensam em casamento. E alguns casam mesmo, até porque geraram filhos e por aí vai. Esse amor, provavelmente erótico, dura um bom tempo. Por vezes chega até a um, dois ou três anos. Entretanto, ele pode causar grandes estragos quando na verdade os seres humanos já estão em outra fase (na maioria das vezes sem perceber): a do respeito.
A fase do respeito talvez seja a mais interessante, pois é nela que o homem e a mulher decidem firmar o compromisso, continuar ou ter filhos e cimentar determinados limites. É uma das fases mais difíceis, pois aqui o casal é bombardeado pela mídia erótica, por corpos mais jovens, a perversão das relações humanas, a inveja, o medo e o ciúme. É nesta fase que homens e mulheres pensam mil besteiras como a de terminar a relação, “dar um tempo”, “continuar ou não com ele (a)”, construir ou dividir patrimônio, criar galinhas, fazer uma casa e cultivar a família. Muitos dizem que é por aqui que esta de amor acaba, notadamente por volta de 7 ou 8 anos, mas não temos nada cientificamente comprovado quanto a isso. E já digo que não acredito em pesquisas neste campo.
A fase da compreensão vem a seguir. É nesta fase que o casal que persistiu vai perceber que tudo não passou de vida e que a vida passa. Obviamente, estou me referindo aos casais já amadurecidos que conseguiram ultrapassar as outras fases e já notam que os corpos não são os mesmos: a pele está seca, o cabelo começou a cair e está ficando branco. A vida é literalmente sentir dor e ver a degeneração alheia é se observar no espelho. Esta fase, em geral une os casais, pois ambos caminham para a finitude e se apegam um ao outro e passam divinamente a compreender a idiossincrasia alheia. Talvez esta fase tivesse lugar na primeira, mas não existe esta possibilidade porque lá eram jovens e jovens pensam com bocas e cabeças diferentes as quais estão em outro lugar no corpo humano. Nesta esfera, os casais são obrigados a manter a sanidade, já estão repletos de obrigações: contas a pagar, animais e filhos a criar e doenças oportunistas a curar. A compreensão é o amor perfeito na sua inteireza e na sua boniteza, pois se ama o que se tolerou no outro e o que ele carregou como defeito por uma vida inteira.
A fase da compreensão do outro, estranho em toda vida, se conclui com a fase da obrigação. Esta fase para uns é deprimente e para outros é fantástica. Aos casais que persistiram no relacionamento cabe a dura tarefa de cuidar inteiramente do já não estranho ser. A vida é a obrigação de cuidar do outro já idoso e cansado, do outro que envelheceu e já não enxerga tão bem, do outro que caiu e machucou o joelho que não volta para o lugar, que teve um câncer em qualquer parte do corpo, que não anda bem da cabeça, perdeu tudo devido a jogos e dívidas, perdeu o filho a filha ou que ganhou netos. Mais que isso, é a obrigação de perceber que a responsabilidade de outrora é mais do que séria. Esta fase é cheia de arrependimentos devido às coisas burras que os seres humanos gostam e teimam em fazer ou deixar de fazer. Afinal são seres humanos. É nesta fase que os casais - pelo menos na teoria - esquecem os momentos ruins, os tempos difíceis e procuram aproveitar ao máximo a obrigação de viver. Viver mesmo, gozar nem que seja na base do Viagra, se arrebentar na praia, aguentar missas, cultos e rituais, cuidar do peito que caiu, do órgão que não sobe tanto e dos cabelos que ficaram definitivamente brancos. Um pouco de humor e cumplicidade ajudam porque é a fase do conhecer melhor o Criador. Provavelmente de perceber que Ele estava presente há tempos neste Outro e que valeu a pena cuidar dele, talvez respeitá-lo o tanto que foi possível e, por último, enterrá-lo não como um fim, mas como uma parte de nós que se foi para ficar perto Dele torcendo pelos nossos que ficaram.
* Professor da FAE (Faculdade de Educação) BH/UEMG e Doutor em Ciências Humanas pela UFMG.