Precariedades

Segundo a ONU, o Brasil lidera o consumo mundial de moderadores de apetite*, as pessoas têm consciência de que estão consumindo mais alimentos do que seu organismo necessita, por questões de saúde ou estética, sabem que devem comer menos e não encontram força interior para administrar esse problema e, claro tentam comprar a solução. Aliás, em nossos dias, “comprar” é a palavra de ordem. Tem pessoas muito chiques, arrojadas, supimpas mesmo, com o pensamento medieval de que podem comprar o Céu.

A verdade é que ninguém quer sacrifício. O jejum, praticado pela maioria das religiões, pretende fortalecer o espírito. Resistir ao desejo, ao apetite, às nossas vontades egoístas, não é apenas um exercício espiritual que nos apresenta o Caminho da Salvação, é também um ato de inteligência que nos aproxima de nós mesmos e nos dá equilíbrio tornando-nos pessoas serenas e saudáveis. Ato de inteligência e de maturidade ainda maior é distinguir as nossas vontades de nossas reais necessidades.

Alguns sacrifícios nos são impostos pelas circunstâncias, e penso que aceitá-los com amor e resignação, sem lamúrias e sem, contudo, entregar-se ao comodismo de aceitar o sofrimento como vontade de Deus, seja uma atitude que muito O agrada.

Quando eu era criança a precariedade morava lá em casa. Calada e sisuda era a presença mais constante, visível mais para as pessoas que nos visitavam do que para nós mesmos quão habituados a ela, multiplicava-se quando meu pai ia para o trabalho. Ela seguia seus passos trôpegos, nas botinas gastas, com buracos dos lados, abertos propositadamente a canivete para libertar os calos, na marmita com farofa de ovo e na garrafa de Coca-Cola com rolha de sabugo, contendo café frio. Mas ela também ficava conosco, na mala de roupa da senhora rica, que minha mãe lavava nas saudosas águas límpidas do Ribeirão da Fartura, no vestidinho de chita de minha irmã. Ia também comigo para a escola, a Major Agenor Lopes Cançado do ano de 1973.

Faz muito tempo, não posso precisar bem o ano, eu devia ter cinco ou seis anos de idade, a venda onde meu pai comprava a prazo, daquelas com grandes latões de gêneros a granel, que eram pesados para os fregueses na hora, em sacos de papel, (lembro-me dos cinco latões de arroz: o de primeira, o de segunda, o de terceira, o arroz quebradinho e o que nós comprávamos) deixou de fornecer-nos o feijão roxinho que estava em falta no mercado. Era meu alimento preferido. A prazo, só feijão preto**. O feijão melhor era reservado para quem podia fazer o pagamento à vista. Certo dia passando pela frente de nossa casa, uma mocinha deixou cair o saquinho de papel em que levava um quilo de feijão roxinho, apanhou por cima o que deu, deixando um resto espalhado pelo pó da rua descalça. Catei bago por bago, numa alegria louca e naquela tarde comi um prato do mais gostoso feijão cozido no fogão a lenha...

Isto não é uma queixa, estou contando estas coisas só para dizer que a precariedade foi também minha mestra, me ensinou quase tudo que sei. Acho que só seremos felizes na medida em que aprendermos a administrar nossas precariedades. Sei que precisamos de muito pouco para ser felizes. Nossa vaidade é que nos custa caro.

Cabem aqui duas frases que uso com freqüência, uma de Jesus e outra de pára-choque:

“Buscai primeiro o Reino de Deus e à sua justiça, o resto virá por acréscimo”.

“Nasci pelado, careca e sem dentes. Tudo o que vier é lucro”.

Um feliz Natal! Não se queixe se faltar o peru.

*Dados de 2007.

** Em Minas, pelo menos na minha região, não se consome o feijão preto a não ser na feijoada.

Carlinhos Colé
Enviado por Carlinhos Colé em 21/12/2011
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