Sinos de Belém, cap 3 - Márcia Garcês e a água
É muito ruim sentir dor. Tenho sentido todas recentemente, nas articulações e tendões. Resolvi dar uma trégua pra mim mesma e cumprir uma coisa já programada: levar Márcia Garcês à piscina.
É coisa simples ir à piscininha do clubinho de bairro, como é meu caso com o Mackenzie, aqui no Méier, subúrbio carioca. Só não é simples armar o esquema que armei pra levar minha amiga pra curtir aquilo que todo mundo nem sente o quanto é importante. Márcia é portadora de esclerose múltipla e tem tetraplegia.
Sou suburbana, tenho meu consultório no subúrbio e amo o lugar onde moro. No dia 17 de dezembro de 2011 eu ouvi de várias pessoas a mesma coisa. Eu não sei bem a razão disto, mas muita gente chegou perto de mim e disse que amava o Méier. Parecia até que eu era uma jornalista e fazia uma cobertura sobre o bairro e o clube, mas naquele dia eu apenas levei Márcia pra se divertir, como minha convidada.
Quem me incentivou foi Alex, o salva-vidas do clubinho. Eu nem percebia a sua existência, mas ele me ouviu conversando com o senhor Nelson, que é um tipo faz-tudo no clube. Eu dizia que gostaria muito de trazer uma tetraplégica pra tomar banho numa das três piscinas do lugar, mas que eu não teria condições de colocá-la, sozinha, dentro de nenhuma delas.
Alex, como um cão de guarda, talvez um anjo da guarda, foi logo falando alto:
- “Pode trazer sua amiga. Tamos aqui pra isto mesmo!”.
Alex nunca ri. Faz cara de mau. Ele me parece ser um soldado o tempo inteiro. Olhei pra cara dele e bati o martelo:
- “Tem certeza do que você tá falando? Eu quero trazer uma pessoa que não move seu corpo pra curtir a piscina e ela deve entrar e sair da mesma todas as vezes que desejar”.
Ele me olhou pelo canto dos olhos, contorceu os lábios (porque ele não ri) e disse:
- “Traz. A gente resolve a parada”.
Semanas depois, eu aqui, com tantas dores, tinha que cumprir o combinado com Márcia Garcês. Ela me exigiu chamar Enoque, nosso técnico em comum de computadores. Ele limpa e conserta as coisas no laptop de Márcia. Aqui na minha casa ele passa horas silenciosamente, formatando tudo, enquanto eu ronco no colchonete.
Resolvi convocar minha amiga Mônica Bronzoni, uma amiguinha querida e mãe da mais promissora modelo brasileira – só que a filha detesta ser manequim... Mônica estava com dor de cabeça, mas se encontrou conosco assim mesmo...
Tudo pronto pro evento. Eu avistei Alex, o salva-vidas e fui logo dizendo:
- “Chegou o dia de eu ter heróis do meu lado, machos. É hoje!”.
Ele me olhou feio... Esperou que eu completasse meu pensamento, então eu expliquei que era chegada a hora de colocarmos Márcia na piscina. Ele lembrou imediatamente do que tínhamos conversado semanas antes. Ele me mandou avisar a sua chegada e virou as costas pra mim... Muito simpático o rapaz!
Já eram dez horas da manhã. Eu já tinha bronzeado todas as minhas celulites e ninguém aparecia. Comecei a achar que a minha ida ao clubinho foi em vão... De repente surgiram ao mesmo tempo Márcia, com sua mãe e a ajudante Rosana. Mônica chegou com cara de poucos amigos. Enoque veio com seu filhote mais novo, um garoto que também não ria, da mesma forma que Alex, o salva-vidas...
O jeito era fazer logo a revolução. Além de Alex, Marcelo, que também é personal trainer, estava de prontidão pra servir Márcia. Obviamente eu disse à minha amiga que dois “Adônis” estavam loucos pra colocá-la na água. Ela me respondeu:
- “Você é completamente doida, Leila...”.
Enoque já tinha se separado de nós, pra curtir uma piscininha de criança, mas eu queria colocar Márcia na piscina de adultos, pra ela lembrar dos tempos em que foi nadadora. Eu a abraçava pra manter seu corpo na vertical e ela adorou, principalmente por pisar no chão com seus pés.
Marcelo falava pra Márcia se mover. Eu olhava pra ele e dizia: “Colega, ela não pode se mexer!”. Ele retrucava: “Pode, sim!”.
Que coisa boa... A certa hora eu achei que Márcia tinha movido uma perna...
O Clube começou a ficar lotado. Os tradicionais frequentadores tomavam conta do espaço e até invadiram o box que eu tinha reservado. Mônica, como uma deputada baiana, começou a reclamar e protestar. Eu disse pra ela baixar a crista, porque Márcia não estava nem aí.
A turma se misturou e até dona Ruth deu uma cochilada básica, coisa que ela pouco faz, junto com os pagodeiros.
Mônica vai ficar bronqueada com a foto, portanto eu a publico melhorzinha aqui.
Havia um churrasco ao nosso lado. Era do diretor do clube. A esposa do diretor foi a primeira a beijar Márcia, Logo depois ela recebeu beijos de todos. Eles conversavam com ela como se fossem uma família, porque naquele clube todos se unem assim. É por isto que adoro esta gente brasileira!
O filhinho de Enoque só falou uma frase: “ODEIO molho à campanha! Tira isto do meu arroz!”.
Eu falei pra ele:
- “Guri, teu almoço ta saindo na cortesia da primeira dama! Faz favor de comer esta merda ou, então, bota pro lado!”.
Ele era exigente e falava:
- “Não gosto disto. Estragou minha comida!”.
O jeito foi fotografar as coisas. Pena que eu não posso me fotografar, portanto saí com cara de mamão murcho, mas tudo bem...
A chuva apareceu meio enfezada e colocou todos os bronzeados embaixo de áreas cobertas. O samba rolava solto, ao vivo, mas Márcia olhou pra mim e disse:
-“To cansada...”.
É muito desgastante para ela suportar uma festa numa piscina por muitas horas, mas o fato de ela ter sorrido, o fato de ela ter participado como uma cidadã comum num clube, o fato de todos nós estarmos unidos em momentos lindos já valeram o sacrifício.
Roberto (o Maradona), que serve as pessoas no bar, é argentino e ex soldado. Ele diz que ama sua terra natal tanto quanto ama o Brasil, como também ama o Méier.
Ele serviu Márcia como se estivesse servindo uma rainha. Os espetinhos de carne dele não estavam no cardápio, mas ele arrumou um “de gato”, que deu pra maneirar a fome até a gente encarar o churrascão do presidente...
Todos naquele lugar, naquele dia, estavam em consonância. Todos nós falamos a palavra AMOR em algum momento. O meu NATAL já foi celebrado.
Leila Marinho Lage
Rio, 17 de dezembro de 2011
http://www.clubedadonameno.com
Leiam o livro “O Diário de Márcia Garcês”
Editora SYNERGIA
http://www.synergiaeditora.com.br/index.php
É muito ruim sentir dor. Tenho sentido todas recentemente, nas articulações e tendões. Resolvi dar uma trégua pra mim mesma e cumprir uma coisa já programada: levar Márcia Garcês à piscina.
É coisa simples ir à piscininha do clubinho de bairro, como é meu caso com o Mackenzie, aqui no Méier, subúrbio carioca. Só não é simples armar o esquema que armei pra levar minha amiga pra curtir aquilo que todo mundo nem sente o quanto é importante. Márcia é portadora de esclerose múltipla e tem tetraplegia.
Sou suburbana, tenho meu consultório no subúrbio e amo o lugar onde moro. No dia 17 de dezembro de 2011 eu ouvi de várias pessoas a mesma coisa. Eu não sei bem a razão disto, mas muita gente chegou perto de mim e disse que amava o Méier. Parecia até que eu era uma jornalista e fazia uma cobertura sobre o bairro e o clube, mas naquele dia eu apenas levei Márcia pra se divertir, como minha convidada.
Quem me incentivou foi Alex, o salva-vidas do clubinho. Eu nem percebia a sua existência, mas ele me ouviu conversando com o senhor Nelson, que é um tipo faz-tudo no clube. Eu dizia que gostaria muito de trazer uma tetraplégica pra tomar banho numa das três piscinas do lugar, mas que eu não teria condições de colocá-la, sozinha, dentro de nenhuma delas.
Alex, como um cão de guarda, talvez um anjo da guarda, foi logo falando alto:
- “Pode trazer sua amiga. Tamos aqui pra isto mesmo!”.
Alex nunca ri. Faz cara de mau. Ele me parece ser um soldado o tempo inteiro. Olhei pra cara dele e bati o martelo:
- “Tem certeza do que você tá falando? Eu quero trazer uma pessoa que não move seu corpo pra curtir a piscina e ela deve entrar e sair da mesma todas as vezes que desejar”.
Ele me olhou pelo canto dos olhos, contorceu os lábios (porque ele não ri) e disse:
- “Traz. A gente resolve a parada”.
Semanas depois, eu aqui, com tantas dores, tinha que cumprir o combinado com Márcia Garcês. Ela me exigiu chamar Enoque, nosso técnico em comum de computadores. Ele limpa e conserta as coisas no laptop de Márcia. Aqui na minha casa ele passa horas silenciosamente, formatando tudo, enquanto eu ronco no colchonete.
Resolvi convocar minha amiga Mônica Bronzoni, uma amiguinha querida e mãe da mais promissora modelo brasileira – só que a filha detesta ser manequim... Mônica estava com dor de cabeça, mas se encontrou conosco assim mesmo...
Tudo pronto pro evento. Eu avistei Alex, o salva-vidas e fui logo dizendo:
- “Chegou o dia de eu ter heróis do meu lado, machos. É hoje!”.
Ele me olhou feio... Esperou que eu completasse meu pensamento, então eu expliquei que era chegada a hora de colocarmos Márcia na piscina. Ele lembrou imediatamente do que tínhamos conversado semanas antes. Ele me mandou avisar a sua chegada e virou as costas pra mim... Muito simpático o rapaz!
Já eram dez horas da manhã. Eu já tinha bronzeado todas as minhas celulites e ninguém aparecia. Comecei a achar que a minha ida ao clubinho foi em vão... De repente surgiram ao mesmo tempo Márcia, com sua mãe e a ajudante Rosana. Mônica chegou com cara de poucos amigos. Enoque veio com seu filhote mais novo, um garoto que também não ria, da mesma forma que Alex, o salva-vidas...
O jeito era fazer logo a revolução. Além de Alex, Marcelo, que também é personal trainer, estava de prontidão pra servir Márcia. Obviamente eu disse à minha amiga que dois “Adônis” estavam loucos pra colocá-la na água. Ela me respondeu:
- “Você é completamente doida, Leila...”.
Enoque já tinha se separado de nós, pra curtir uma piscininha de criança, mas eu queria colocar Márcia na piscina de adultos, pra ela lembrar dos tempos em que foi nadadora. Eu a abraçava pra manter seu corpo na vertical e ela adorou, principalmente por pisar no chão com seus pés.
Marcelo falava pra Márcia se mover. Eu olhava pra ele e dizia: “Colega, ela não pode se mexer!”. Ele retrucava: “Pode, sim!”.
Que coisa boa... A certa hora eu achei que Márcia tinha movido uma perna...
O Clube começou a ficar lotado. Os tradicionais frequentadores tomavam conta do espaço e até invadiram o box que eu tinha reservado. Mônica, como uma deputada baiana, começou a reclamar e protestar. Eu disse pra ela baixar a crista, porque Márcia não estava nem aí.
A turma se misturou e até dona Ruth deu uma cochilada básica, coisa que ela pouco faz, junto com os pagodeiros.
Mônica vai ficar bronqueada com a foto, portanto eu a publico melhorzinha aqui.
Havia um churrasco ao nosso lado. Era do diretor do clube. A esposa do diretor foi a primeira a beijar Márcia, Logo depois ela recebeu beijos de todos. Eles conversavam com ela como se fossem uma família, porque naquele clube todos se unem assim. É por isto que adoro esta gente brasileira!
O filhinho de Enoque só falou uma frase: “ODEIO molho à campanha! Tira isto do meu arroz!”.
Eu falei pra ele:
- “Guri, teu almoço ta saindo na cortesia da primeira dama! Faz favor de comer esta merda ou, então, bota pro lado!”.
Ele era exigente e falava:
- “Não gosto disto. Estragou minha comida!”.
O jeito foi fotografar as coisas. Pena que eu não posso me fotografar, portanto saí com cara de mamão murcho, mas tudo bem...
A chuva apareceu meio enfezada e colocou todos os bronzeados embaixo de áreas cobertas. O samba rolava solto, ao vivo, mas Márcia olhou pra mim e disse:
-“To cansada...”.
É muito desgastante para ela suportar uma festa numa piscina por muitas horas, mas o fato de ela ter sorrido, o fato de ela ter participado como uma cidadã comum num clube, o fato de todos nós estarmos unidos em momentos lindos já valeram o sacrifício.
Roberto (o Maradona), que serve as pessoas no bar, é argentino e ex soldado. Ele diz que ama sua terra natal tanto quanto ama o Brasil, como também ama o Méier.
Ele serviu Márcia como se estivesse servindo uma rainha. Os espetinhos de carne dele não estavam no cardápio, mas ele arrumou um “de gato”, que deu pra maneirar a fome até a gente encarar o churrascão do presidente...
Todos naquele lugar, naquele dia, estavam em consonância. Todos nós falamos a palavra AMOR em algum momento. O meu NATAL já foi celebrado.
Leila Marinho Lage
Rio, 17 de dezembro de 2011
http://www.clubedadonameno.com
Leiam o livro “O Diário de Márcia Garcês”
Editora SYNERGIA
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