AMOR PRA CARALHO - Página de um diário nunca escrito (por EMILY BURTON)

Nos papéis sociais que encontrei me esperando já prontos desde quando nasci, não me ajustei a nenhum:

Não fui uma criança inocente, bondosa e feliz (desde os 9 anos eu já desconfiava da verdade absoluta), não sofri com crises de identidade nem com a síndrome de grupo na adolescência, não dei para o primeiro namorado por que ele não quis em meu respeito, então dei para o primeiro que apareceu e que me serviu, não abracei nenhuma das crenças religiosas cristãs ou não cristãs, não segui nunca intencionalmente nenhum código moral social, preferindo a ética humanista, jamais tive esperanças em um mundo melhor na juventude nem acreditei que tinha todo o tempo do mundo ou que era melhor ou superior aos mais velhos apenas por ser jovem, nem superior ou melhor que os mais jovens, por ser mais velha, não fui padrão de beleza nem quando peito pequeno e bunda grande eram legais, nem quando ser esquelética e peituda valiam pela felicidade, não tingi o cabelo de loiro quando era status mas o fiz quando significava ser vagabunda, não fui beatnik, hippie, punk ou outra denominação qualquer por que nenhuma delas me contemplava totalmente, não atingi a maturidade quando cheguei à idade adulta, sempre quis ser mãe solteira e de preferência que fosse de uma menina para ensinar-lhe tudo o que aprendi na tora, mas não desempenhei meu papel de mãe perfeita exemplo de comportamento e sempre amorosa e sábia, embora meu filho minta de vez em quando por pena, muito menos desempenhei o papel de esposa amante, solícita, companheira e sempre sexy, embora meus ex-maridos digam que não me esqueceram, que simplesmente queriam se aquietar e viver a vida, e um deles ainda tenta até hoje ser perdoado não sei por qual crime que pensa que cometeu desde que o abandonei sem explicações, não sou uma avó com quem uma mãe queira deixar seu filho por mais do que uma semana (sou má influência) nem eu aguento tanto tempo, na escola jamais tive uma equipe de trabalhos fixa, precisava sempre trabalhar sozinha ou me inserir num grupo por ordem do professor, na Universidade não comprei nenhum livro nem me alinhei com os caras de mente livre nem com os de mente fechada nem com os professores ou o pessoal do DCE, e ganhei a Láurea e o apelido de 'dona da verdade', 8 dos 18 colegas de curso terminaram a graduação sem falar comigo sem que nenhum conflito tenha existido e sem razão aparente, não tive nem tenho melhor amigo, na profissão enfrentei e enfrento conflitos éticos que horrorizam meus colegas de trabalho (que os negam e vivem bem assim), no intelecto não correspondi aos sonhos de grandeza nem às grandes realizações que se esperaria de alguém inteligente acima da média, no sexo não fui castrada nem influenciada ou agraciada pelos papéis sociais e morais atribuídos ao meu gênero e aos conceitos de heterossexualidade e/ou bissexualidade, transexxualidade, abstinência, pudor ou rótulos ou cuidados com a imagem que o outro terá de mim depois da transa, no ambiente familiar sou considerada difícil, incompreensível, fria ou emotiva demais, imprevisível, necessitando de ajuda, muitas vezes inconveniente e não muito bem-vinda nos funerais, missas ou batismos.

No amor...

Bem, no amor cumpri e descumpri todos os meus papéis sociais esperados, condenados, aceitáveis ou inaceitáveis, atribuídos, rejeitados, impostos ou inevitáveis, desejados ou indesejados e construídos ou destruídos por mim mesma:

Amei, amo e chorei e choro e ri muito e rio, traí, fui traída, acreditei em mentiras e contei as minhas, perdoei e fui perdoada, amei aos belos e aos feios, aos bons e aos maus, aos inocentes e aos culpados, aos inteligentes e aos tapados, aos homens e às mulheres e aos homossexuais e travestis, não abri mão de amar aos seres humanos que amava, por mais mal que me fizessem, ou bem; amei sem querer ou intencionalmente, amores reais e inesperados ou construídos como uma mentira que a minha vaidade queria, vivi o amor para viver o amor que sentia e descobrir por mim mesma se, no final, valia a pena ou não.

Valeu a pena em todas as vezes.

Na minha lápide, se eu me importasse com lápides, túmulos e cultos à minha memória, seria inscrito:

"Desajustada desde o berço. Nenhum papel lhe serviu nesta peça. Mas amou pra caralho!"

BASEADO NO DIÁRIO GRAVADO DE EMILY BURTON

NOTA:

Emily nasceu aos 5 anos.

No momento, está afastada das publicações pois pretende revolucionar o mundo com seus poemas e ainda não estão prontos para tal.

Enquanto não publica, pediu-me que tentasse pôr ordem em um punhado de fitas K-7 que gravou desde que aprendeu a manusear um gravador.

Agora, não grava mais.

Disse-me que já disse tudo o que queria nestas fitas e que eu poderia utilizar seu diário gravado como quisesse.

Não sei se há algo de aproveitável nas coisas dela, muitas fitas estão danificadas e são de péssima qualidade anos 70, há chiados, gritos, choro e gargalhadas.

Ainda estou garimpando o material.

Talvez pare com os meus textos para publicar o que descobrir por lá.

Iama K
Enviado por Iama K em 18/12/2011
Reeditado em 18/12/2011
Código do texto: T3395193