Um encontro desejado

Às vezes afasto-me de casa sem vontade de voltar, voltar pra quê, se até a minha gata de estimação já morreu? Nem o miado dela eu consegui salvar. Dentro de mim a guerra é santa, o sangue escorre em minhas veias como água de poço que não ferve, que não entra em ebulição, que não evolui. Tudo está nublado, tudo está em desconforto. Parece que não durmo, que às horas não caminham, que os ventos não sopram. Tudo é noite ou morte, dentro de mim.

Do outro lado do muro os cães ladram, os ladrões roubam, os políticos mentem, os padres não querem rezar a velha missa em latim. Na esquina o mendigo chora a falta de dinheiro, a menina diz que virou garota de programa porque não tem trabalho, o camelô vende seus bagulhos falsificados porque é mais barato, o sinal está vermelho - verde - amarelo... grandes merdas, ninguém respeita o guarda de trânsito, ninguém faz o sinal da cruz, ninguém tem medo das penas da Lei. Diante deste conflito generalizado saio em busca da minha sombra, duende que nunca vejo, que nunca reclama, mas que está sempre por perto.

Sem saber para onde ir fui andando sem a mínima preocupação com nada, até que me vi frente a frente com uma cartomante. Depois de muita insistência por parte dela, permiti que colocasse para mim, as cartas. Após alguns segundos ela disse-me: “se você for para o combate que vá preparado para matar ou morrer. Se você tiver piedade para com os seus inimigos é melhor ir cuidar dos bêbados, dos drogados e das prostitutas. Provavelmente esta seria uma boa empreitada, pois trabalharia para alimentar uma legião de famintos que perambulam pelas ruas e avenidas das principais capitais brasileiras, isto sem contar com o Distrito Federal, onde a mendicância pode ser vista e admirada, na porta do Palácio do Planalto sem qualquer esforço ou restrição”. Numa segunda combinação de cartas, ela falou outra vez: “você gosta de uma pessoa interessante”. Achei legal sua fala. Nunca havia pensado em uma personalidade especial com essa característica. Daí fiquei matutando para saber quem era esta criatura tão encantadora e querida. Pensei na minha mãe, no meu pai que já faleceu, na minha professora do primário que eu gostava tanto e que se chamava Rosa. Mas depois de meia hora de meditação, como um jovem Buda, descobri que sou um Narcisista. A pessoa que gosto de verdade sou eu mesmo, infelizmente nada faço, nada alimento para que este gostar flua de mim para mim mesmo. Provavelmente todas as pessoas deste mundo pensem igual a mim. Esta pode ser a única verdade que existe dentro de cada um de nós. Porém, pouquíssimos são os que sabem tirar proveito do pouco que conhecem.

Depois que deixei a cartomante para trás e venci alguns quarteirões, encontrei um amigo que trazia no rosto a expressão maior da felicidade. Um sujeito de raríssimas posses, um negro na cor e na alma. Esbanjava um sorriso de menino fujão. Eu nada compreendi, me perguntei como era possível ser tão pobre e tão rico ao mesmo tempo. Ele trabalha em uma creche, um jardineiro de mão cheia. De brincadeira eu disse: negro velho, se você perder esse emprego que lhe dá roupa lavada, cama, mesa e comida, vai ter sérios problemas no fim da vida. Ele olhou-me nos olhos com firmeza. E rindo, respondeu: “para quem vive do pouco, tudo parece muito, para quem vive do muito, tudo parece infinitamente pouco, além do mais, o fim da vida é como aquela árvore que se planta, mas da qual não se colhe os frutos”.

Por essas e outras é que não vou para as academias levantar barras de ferro, ou correr contra o relógio nas esteiras que não são capazes de me proporcionarem qualquer surpresa.

Hoje encontrei a cartomante e um amigo invejável caminhado pela rua, amanhã quem sabe não encontro o andarilho Sócrates em alguma de nossas praças e ele me diga: “conhece-te a ti mesmo” e eu deixarei de ser este Narciso que agora vejo e antevejo refletido no meu dia a dia?

Pedro Cardoso DF
Enviado por Pedro Cardoso DF em 07/01/2007
Reeditado em 11/10/2017
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