A MAGIA DO OLHO MÁGICO

A MAGIA DO OLHO MÁGICO *

Seu nome era Anderson. Nome de americano. Para mim, no entanto, era bem brasileiro, nascido ali na Cachoeirinha, então quase selva, naquele princípio de 1950. Tinha um rosto largo, luminoso e amigo, embora não entendesse eu, então na ignorância dos meus oito anos, o porque de terem escrito em sua face morena, expressões como “dial”, “meters”, “klcs”, “broadcasting system” e “short-wave”, bem como nomes de cidades que me pareciam tão distantes como a Lua: New York, London, Rome, Paris, Buenos Aires, Tokyo, Pekim, Hong-Kong...

Mas o que mais me fascinava nele era o seu olhar. Mesmo porque o Anderson possuía um só olho. Sim, um só olho. E grande. Duas ou três vezes o tamanho do meu olho de menino. E ainda por cima, verde. Quando acordado, o olho do Anderson brilhava, e sua pupila, ora dilatando--se, ora contraindo-se, me hipnotizava. Meu olhar do seu não se desgrudava, e então todos em casa ficavam em total silencio, porque o Anderson ia falar. E cantar. E com vozes diferentes: ora de homem, ora de mulher, ora de criança. Tocava também qualquer instrumento. Fazia ruídos das coisas. Imitava os sons dos bichos. O canto dos pássaros. O sopro do vento. O barulho do mar.

Anderson não era gente como nós. Anderson era mais do que gente. Anderson era um rádio. Nosso primeiro rádio.

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A chegada do Anderson em nossa casa da rua Suzete, como vim a saber muito tempo depois, já moço, foi mais ou menos atribulada, devendo-se muito à insistência, persistência, teimosia até, da minha mãe. Tínhamos chegado do interior, de Espírito Santo do Pinhal, com, segundo a expressão então corrente, “com uma mão na frente e outra atrás”. Quase nada de mobília, pouca coisa de roupas, só o pai com o emprego de barbeiro garantido, pois viera antes. Tão cedo não iria sobrar dinheiro, quanto mais para a compra de um rádio, embora já devesse ser um sonho secreto da minha mãe, pois era ela, lá em Pinhal, que ficava junto à Dna. Lazinha e outras vizinhas e amigas para, entre chiados, estáticas e fugas de sintonia, ouvir as novelas e os cantores e cantoras da época, pelas ondas curtas da Rádio Nacional do Rio de Janeiro.

Depois de alguns dias os irmãos mais velhos começaram a trabalhar. Minha mãe começou a costurar e também, juntamente com uma vizinha, a montar guarda-chuvas que iam buscar numa fábrica lá pelos lados do Brás. Ficávamos então só nós três em casa: minha mãe, eu, e meu irmão caçula. E naqueles dias, sentíamos muitas saudades de Pinhal. Sentíamo-nos muito sós, perdidos numa cidade grande demais. Não tínhamos amigos. Não tínhamos sequer o conforto material a que estávamos habituados a ter lá no interior: ruas calçadas, água encanada, iluminação pública. E naqueles dias de cinza e de garoa, às vezes de chuva, chorávamos. Chorávamos muito. Acho que foi naquela época, naqueles dias de cinza, de garoa e de chuva que, das ruas barrentas da Cachoeirinha, uma figura muito triste esgueirou-se para dentro do meu peito e lá está até hoje.

Mas aí veio o guarda-civil para nos salvar. Explico: naquela época, pelos arrabaldes, sem lojas, o que predominava eram as vendas de porta em porta, a crediário, ou a prestações, como se dizia, a perder de vista. Mascates, profissionais ou amadores, vendiam de tudo, ou quase. Esse guarda civil, do qual não guardei o nome, nas suas horas de folga vendia rádios. E vendeu o Anderson para minha mãe. Parece até, e acredito mesmo, pois naquela época era assim, que ele deixou o rádio, sem entrada, sem que se assinasse nada. Tudo em absoluta e total confiança. Tudo apalavrado e simplesmente marcado numa caderneta ou ficha. E assim, rádio posto, rádio ligado, dificilmente alguém iria devolvê-lo. À noite, ao chegar, meu pai, que tinha medo, pavor até, de dívidas, tentou por todos os meios fazer com que minha mãe cancelasse a compra e devolvesse o Anderson ao guarda-civil. Ela, valentemente, não capitulou, fez pé firme, disse a meu pai que já tinha muita costura encomendada e que ele não se preocupasse, pois o pagamento das prestações iria sair do seu exclusivo trabalho. Dessa forma, entronizado sobre a cristaleira preta, passou a brilhar, dia e noite, noite e dia, o olho esverdeado do Anderson. A partir de então não houve mais o silencio triste na casa da rua Suzete. Não estávamos mais sós. Graças ao Anderson, tínhamos a cidade, o país e o mundo junto de nós. Noticias. Música. Alegria. Sonhos. Fantasia. Emoções. Tudo trazido pelo rádio, e pelas vozes do rádio.

Da Nacional do Rio de Janeiro, que ouvíamos em ondas curtas, descobrimos e pulamos para as rádios de São Paulo, em ondas médias: A Tupi, PRG-2; Difusora, PRF-3; Record, PRB-9; Piratininga, PRB-6; Bandeirantes, PRH-9; Gazeta, PRA-6; Cultura, PRE-4; e, para alegria de todos, mais é claro, da minha mãe, a PRA-5, Rádio São Paulo, “Uma voz amiga em seu lar”, cujos estúdios viríamos conhecer algum tempo depois, à av. Angélica, 430, esquina da alameda Barros.

Mas essa é outra estória – e história – e fica para, como o “speaker” anunciava, com voz grave, no fecho do capítulo do dia, com o adequado fundo musical de “suspense”: — ... e não deixem de ouvir amanha, mais um capitulo da emocionante radionovela de X de Y, .................., numa gentileza do sabonete ......

A alegria da minha mãe era mais que justificada. A Rádio São Paulo transmitia então, praticamente durante todo o seu período de transmissões, só novelas, e da melhor qualidade. E passamos, desde as primeiras horas da manhã, a comer, brincar, trabalhar, e até à noite, já quase a dormir, com as vozes de Waldemar Ciglioni, Lenita Helena, Nélio Pinheiro, Augusto Barone, Enio Rocha, Ilka Ferreira, Marthus Mathias, Plínio Camargo, Newton Sá, Dalva Costa, Leonor e Nara Navarro, Mirtes Grisoli, Arlete Montenegro, Gessy Fonseca, e tantos e tantos outros cujos nomes já não nos lembramos mais. Até alguns “jingles”, “reclames” de então, ficou-nos na memória: Tome Phimatosan, use Kolynos, banhe-se com Lever, perfume-se com Ross, penteie-se com Glostora, ou, “Dura Lex, Sed Lex - no cabelo só Gumex"; faça a louça brilhar com sapólio Radium, lave a roupa com sabão Cristal, o maioral. Faça como os amigos da Marina, use Cito, Pox e Parquetina. A hora certa, diretamente do mosteiro de São Bento, com o Salomão Esper, ao microfone da Piratininga anunciando: “Uma gentileza da farinha Maria, um produto Minetti, Gamba & Cia. Ltda.”. Ou então na Gazeta, com o Nicolino Liguori: “Eska, no pulso ou no bolso, representa precisão a serviço da pontualidade”. E muitos, e muitos outros.

O que ficou na verdade, é que hoje, em cada rádio que ouço, durante as quase vinte e quatro horas do dia, talvez eu esteja à procura do Anderson. Não importa se é o Gradiente na sala, o Philips no escritório, o Sony à cabeceira, o walkman Aiwa na rua e na condução, ou pela internet. Talvez, ou principalmente, , conscientemente ou não, eu esteja à procura da inocência daquele menino de oito anos que ficava com a cabeça entre as mãos, sentado à mesa daquela casa na rua Suzette, ali no bairro da Cachoeirinha, com os olhos fixos no grande, verde e luminoso olho, e com os ouvidos mais do que inteiramente abertos e atentos às vozes do rádio.

Mas, lembrando Woody Allen nas cenas finais do seu "A Era do Rádio"¹:"... é pena que a cada ano que passa aquelas vozes estejam ficando cada vez mais indistintas", posso também dizer que as minhas tao queridas vozes dos antigos locutores, digo "speakers"; as das minhas radioatrizes, heroínas; dos meus heróis, radioatores, também estão ficando cada vez mais fracas e mais distantes, quase desaparecendo nesse espaço infinito, onde oscilam, em múltiplas frequências, as ondas do rádio, e perdendo-se (?) inexoravelmente, nas curvas do tempo e da nossa memória.

Restam-nos, felizmente, as gravações: mecânicas, eletromecânicas, elétricas, magnéticas, óticas. Nos cilindros, ceras, acetatos, resinas, fitas, películas, chips, cristais, - e em tantos outros meios e materiais que virão ainda a ser descobertos -, estão elas à nossa espera, silentes e pacientes.

Vamos ouvi-las?

*(trecho do caderno de memórias "Dias de Azul e de Cinza")

(1) Woody Allen - final de “A Era do Rádio” (Radio Days) - Orion Pictures - 1987.