Desabafo de craque
Todo enxadrista reconhece a dificuldade que temos para lidar com as derrotas no tabuleiro. Muitas vezes estão implícitas demais para que tenhamos a perfeita noção dos lances sobre nossos erros de atenção. Mesmo para o vencedor poderá parecer obscuro. O fato é que todo enxadrista começará fatalmente sua glória pessoal através das “partidas livres” que defino como “de praia” ou “de quintal”. Sem que se pareça com Kaspararov há nessas partidas ocasionais, uma luta de egos, onde cada jogador muscular, pretende receber o título do ilustre russo, jogando debaixo do abacateiro. São partidas saborosas e inextrincáveis.
Poeticamente há sempre meninice nesse brinquedo milenar. Montar peças, exercitar a memória, dominar ímpetos baixos, variações de humor, melancolia e até grandes perdas. Inúmeros benefícios fazem parte dessa miniatura épica. Desconheço alguém capaz de deslustrar o brilho dessa ocorrência. Apoiei a humanidade ensinando um sujeito o básico dos movimentos, ele exclamou: que jogo infame! Lembro-me também de renomado jogador municipal que estalou uma risada debaixo dos seus bigodes de nicotina quando lhe disse: todo enxadrista é um pugilista fumante! Riu-se como Hans Staden ao saber que os índios compreenderam finalmente a sua nacionalidade. O uso do relógio em xadrez consola e cobre de sentido o absurdo tempo dos malandros que bocejam na hora do outro jogar Nos tempos do jogo chamado chaturanga, pai mais próximo do atual xadrez, tudo indicava uma poética finalização com alto nível de sensibilidade: O Rajá ou Sheik encontrava-se diante do xeque-mate cercado por uma canoa, um elefante e um ministro.
Relativo à torre, bispo e rainha. O Rajá possuía o direito de um lance voador de cavalo diante do mate derradeiro. Isto suavizava certamente ao máximo a identidade dos golpes violentos impregnados atualmente no tabuleiro e oriundos da idade média. O jogo possuía a força precisa e graciosa de filhotes de tigres brincando num jardim.
Depois aprender a sobreviver sobre a ruína simbólica é lição inesquecível. Somente nele o indivíduo retorna aquela velha e sonorosa lição infantil com o qual massacramos as crianças indefesas: olhe, nunca com as mãos! No adulto a retomada desse senão torna o indivíduo soberano, dotado de lógica prática. Só o xadrez faz isso e para melhorar o mundo seria preciso que todos retomassem esta velha lição que acaba esquecida. Ocorre um pronunciado alívio que é o de saciar esta lição reprimida com sucesso renovado. Pode parecer pouco, mas é um grande passo. É o retorno da profundidade simples da mente humana contra as monomanias corriqueiras da subjetividade aprisionada em torno dos problemas cotidianos e suas variantes.
A própria diferença tonal do xadrez nos faz perceber e compensar variações do quanto todo ser humano é tecnicamente policromático na pintura da alma. Sendo no fundo, um só o homem, e o mundo inteiro de possibilidades.
O xadrez se presta a raros elogios: espetacular, esplêndido, magnífico, sublimes lances da imaginação redentora. Com a inserção do relógio, que os ingleses muito bem compreenderam; tudo mudaria no tom calado das respostas sobre a civilidade dos lances. Com o relógio é desnecessário aguardar tediosamente o lance alheio. Produz um ponto ótimo de calmaria que agricultei, sobre as rudes derrotas de quintal, debaixo da pitangueira. Pronto para disputas enxadrísticas em tempo escasso (Blitz). De resto há poucos na cidade com vontade de jogar nestas condições. Vencem quando lhes dou todo o tempo do mundo para vencer e Lordsir Peninha esta em falta comigo para a desforra.