Ninguém é perfeito

Manhã quente, noite mal dormida, nervos á flor da pele.

Plantada no ponto de ônibus há quarenta minutos.

Atrasada para a consulta há vinte.

Entre um bocejo e uma olhada para o relógio de um bar, avistei o ônibus se aproximando.

Estiquei o cotovelo e o dedo indicador e fui devidamente ignorada.

O ônibus passou direto, lotado, e o motorista apenas gesticulou com os dedos: "tá cheio".

Até parece que os meus pneuzinhos fariam diferença ali dentro.

Até parece que se eu fosse uma mulher gostosona de umbigo para fora, ele passaria direto.

Desgraçado, não sabe que estou atrasada?

Xinguei, berrei, lancei uma pedra, me atirei no meio da rua.

Tudo isso por pensamento, é claro.

Na realidade, me limitei a dizer bem baixinho “Filho da Putaaa”

A senhora do meu lado também havia sido ignorada.

E ela era velhinha, coitada!

Tinha que ter entrado no ônibus e ainda tinha que ter um lugar para sentar.

Povinho sem educação...

Completava-se uma hora de espera no ponto.

Até que outro ônibus aproximou-se.

Não menos lotado, porém mais educado; parou.

Entrei. Quer dizer, mais ou menos. Fiquei parada na escada, espremida contra o pára-brisa.

Agora, nem uma mosca caberia ali dentro.

Mas o motorista irritantemente educado continuava parando o ônibus em cada ponto.

Quando se está do lado de dentro, é fácil gritar:

Porra, piloto! Tá lotado, passa direto.

E eu estava no lado de dentro. E adoraria ver a cara estressada das pessoas ignoradas pelas ruas.

Doce vingança.

O ônibus estava lotado, ué.

E eu estava atrasada. Precisava mesmo que o motorista fosse ligeiro.

Gravatas, chupetas e umbigos foram então ficando para trás.

Delícia.

Depois o ônibus começou a se esvaziar.

Minhas pernas cansadas e sortudas logo encontraram um assento para descansar.

Agora eu estava ótima.

Janela aberta, bolsa no colo, respiração tranqüila.

Até que subiu no ônibus uma senhora.

Por que as senhoras têm que pegar ônibus de manhã? Pq?

Por que não vão dar comida aos pombos?

Tinha que ter ficado na calçada esperando um ônibus menos cheio, pô.

Olhei discretamente ao redor, não havia mais lugar livre no veículo.

"Não pára do meu lado, não pára do meu lado, não pára do meu lado" – ela parou.

Puta merda.

A senhora agora estava parada ao lado do meu banco, mal se agüentava e olhava para mim com olhos de quem diz: levante-se.

Pensei nas pernas de varizes dela.

Pensei nas minhas avós.

Pensei em mim mesma daqui a cinqüenta anos.

Pensei em quantos ônibus já não a teriam ignorado.

Pensei no quão egoísta estava sendo.

Pensei que dessa forma o mundo não muda.

Pensei na história dos pequenos gestos, grandes mudanças.

Pensei na minha educação. No meu pai e na minha mãe.

Pensei prá caralho e a senhora não desistiu.

Enfim. Não tive escolha.

Reclinei a cabeça, fechei os olhos e fingi que estava dormindo.

Cris Souza Pereira
Enviado por Cris Souza Pereira em 14/12/2011
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